terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

SONINHA "MEU MARIDO"


Combinaram o chá na casa da Janota para às 16h de uma quarta-feira. Eram as tais amigas de Madame Filardi que se reuniam, como de costume, para degustar uma generosa variedade de bolos, doces e biscoitos finos (além dos chás, claro), enquanto se dedicavam ao esporte mais praticado em terras tupiniquins: a maledicência.


Essa versão do clube da Luluzinha para sexagenárias não se tratava de um grupo exclusivo, é bom que se diga. Dessas reuniões também participavam eventuais convidadas, por indicação de alguma veterana. Ou seja, as novatas eram escolhidas a dedo (sem trocadilho). Pelo menos, era o que pensavam até a Soninha dar as caras por lá. A mais nova amiga do peito da Matilda (seja lá o que isso queira dizer) andava na casa dos quarenta; de aparência refinada e um tanto esnobe, tinha o jeito afetado por uns cacoetes tais que logo a colocaram na alça de mira de Madame Filardi - esta abençoada com o talento incomum de farejar nos ambientes o indiscreto aroma da frescura.

A graça dessas reuniões estava no fato de que maridos e ex-maridos eram sempre elevados à solene condição de judas da vez - e na maior cara de pau, pois boa parte desses digníssimos senhores já havia sido despachada para o outro mundo. Mas a fofoca das madames corria frouxa como se o frescor de novidade ainda pairasse por ali. A turma na casa dos quarenta (caso da Soninha) não negava fogo. Ao contrário, até puxava o coro, no maior despudor. Era um tal de fulano fez isso, beltrano fez aquilo etc tal. Era assunto que não acabava.

Lá pela terceira ou quarta aparição da Soninha, a turma ficou sabendo que seu marido (é, ela tinha marido) era gerente na administração superior de uma multinacional, algo raríssimo entre as frequentadoras habituais, e o Ari Anacleto - eis o nome - não tardou a tornar-se o hit do momento no clube de fofocas da Janota.

Tudo ia bem, com uma conversa aqui, outra ali, até que o clima azedou. Ninguém soube dizer, mas o despretensioso bate-papo, sobre trabalho doméstico, desaguou num tremendo bafafá. E foi a Janota quem veio com a corda:

- Acho um absurdo esse negócio de mulher não trabalhar fora. No meu tempo (havia muito, ela quis dizer), eu dava duro, chegava junto do meu saudoso Arlindo. E arrematou: - Se a mulher não ajudar o marido e não trouxer um dinheirinho para casa, é certo que o casamento voa pela janela!

Foi aí que a Soninha, entrou com a caçamba. Indignou-se de tal modo como se a assertiva da Janota fosse a coisa mais absurda que já ouvira. Orgulhosíssima, a novata empertigou-se na cadeira, com o nariz empinado, ergueu a mão direita sobre o peito, à altura do coração, e, batendo sobre este repetida e freneticamente, soltou essa:

- Pois fiquem sabendo que o MEU MARIDO (com ênfase no MEU) - e deu uma pausa - o MEU MARIDO ME SUSTENTA! (dessa vez, a ênfase foi no MARIDO).

À essa altura, Madame Filardi, que se deliciava com um biscoitinho amanteigado, engasgou-se com o que ouvira e, qual um avestruz, já procurava um buraco qualquer onde pudesse meter a cabeça. As irmãs Liduína e Lidoca, sabedoras de onde ia dar aquilo, tomaram a Madame pelos braços e conduziram-na ao toilette, onde esta pôde aliviar-se desavergonhadamente numa sonora gargalhada (abafada por uma toalha de rosto, o que, convém dizer, não adiantou muito). Soninha só não ouviu o descaramento da Madame porque Janota morava em Copacabana, num desses apartamentos antigos em que o banheiro ficava a léguas da sala de estar.

Já Madame Ágata, que andava metida em assuntos de ocultismo e de espiritualidade, apelou para o Além em busca de algo que lhe pudesse esclarecer o que andava pela cachola da Soninha.

Ofendida, a novata partiu para um desaforado bate-boca com a Janota, logo apartadas pela turma do deixa disso. Ainda assim, a coisa não acabou bem. Depois de ter a sua honra maculada, a birrenta Soninha foi-se embora, batendo a porta atrás de si. E nunca mais se soube dela, para o alívio geral da turma. Nem mesmo a Matilda, agora ex-amiga do peito, soube do seu paradeiro.

Como as modernosas sexagenárias não perdiam a viagem, desde então as amigas passaram a referir-se à desafeta pela alcunha MEU MARIDO. A Soninha, é claro, não sabe. Ainda.

(Francisco Filardi)