Na
adolescência, li uma história em quadrinhos na qual um jornalista
pergunta ao Superman por que ele não mata seus inimigos, já que
estes sempre retornam para atormentá-lo. A resposta - "Porque
fiz uma opção pela vida" -
causou-me tremendo impacto. Até hoje, perco-me no complexo
emaranhado de maravilhas e de abominações que se convencionou
chamar "natureza humana", devido a essa frase. A pergunta
que me assombra, desde então, tem sido: quando, de fato, fiz minha
opção pela vida?
É
no mínimo curioso que a resposta tenha vindo de um extraterrestre.
Tão curioso quanto é o fato de nós, mortais, não darmos a mínima
importância a essa condição do Superman. Sua bondade e virtudes
parecem estar acima do fato de estarmos a par de sua origem. Sendo
bom e dotado de poderes excepcionais, o estrangeiro é visto como
herói e, portanto, "solução para os problemas da humanidade".
Não há o menor estranhamento nisso. Ao contrário, é
reconfortante. O olhar extraterreno sobre a raça humana é
desinteressado e altruísta. Mas nós, humanos, não somos assim;
nossos "poderes" se estendem ao raio de nossas decisões e
ações, ambas sujeitas a fraquezas (leia-se "interesses").
E é justo esse contraste que fratura a nossa torpe e mesquinha
percepção acerca de nossos semelhantes e do planeta em que vivemos.
Hipocrisia
à parte, é interessante que Shuster e Siegel, criadores da
personagem, tenham transferido para um extraterrestre a preocupação
e o peso da responsabilidade (aparentemente maiores do que a nossa)
de cuidar da Terra. Grosso modo, é algo que nos reduz porque fazer
uma opção pela vida (seja nossa, seja do planeta) exige um esforço
sobre-humano - o que só ele, sendo super, estaria apto
a fazê-lo - o que, sabemos, não é verdade; no fundo, trata-se de
um recado sutil para não esmorecermos no combate ao egoísmo, ao
individualismo, à ganância e à sede de poder que impregnam de
fuligem e sombras o nosso mundo.
Aonde
desejo chegar com esse introito? Ao que parece, a opção do
Superman tem respaldo no sexto Mandamento das Tábuas de Moisés. Na
Lei não está escrito "Não matarás seu semelhante",
"Não matarás um animal", "Não matarás
um inseto". Lá está, tão somente: "Não
matarás". Ponto. A ordem é intransitiva, não carece de
complemento. Trata-se de máxima universal, incondicional. Pela
letra da Lei, não deveríamos matar qualquer criatura, qualquer que
seja. Não deveríamos sequer arrancar da terra uma flor. Não
deveríamos interferir na criação divina e, menos ainda, abreviar
uma vida. Ainda assim, fazemo-lo. Matamos porque nossa índole é
transgressora: matamos para comer, matamos por invasão de
território, por ódio, por vingança (subproduto do ódio), até por
"prazer" e por dinheiro. Nossa natureza corrupta torna
evidente a longa estrada que precisamos percorrer para nos tornarmos
dignos de fazer uma opção pela vida. E é não matando que o
Superman nos aponta a direção.
Em
vários de seus livros, o teólogo Leonardo Boff destaca a
importância da palavra "cuidado"; do cuidado que devemos
ter nas nossas relações para com Deus, para com nossos semelhantes,
para com nós mesmos, a natureza, os animais, o planeta. Porque a
felicidade, em seu sentido pleno, depende de como estabelecemos e
mantemos essas conexões. A resposta do Superman, inspirada em
Francisco de Assis, assevera que é preservando a vida (a nossa e a
das demais criaturas) que nos tornamos verdadeiramente gratos pela
maior bênção com a qual fomos presenteados.
Vivemos
e sobrevivemos neste mundo com os olhos voltados para a Eternidade;
mas isso só nos será possível pela edificação do bem.
Por que é a partir do bem que enxergamos o mundo com outros olhos.
E somente pelo bem reconhecemos a natureza divina em nós. A
"opção pela vida" se dá, de fato, quando persistimos, de
modo consciente, na liberdade do outro. Porque a destruição do
outro é nossa ruína; quando "matamos" o outro, ainda que
de forma não literal, também "matamos" em nós algo de
divino. E isso desagrada a Deus. E também ao Superman.
(de Francisco Filardi)