Morelli batia ponto no serviço
público havia mais de quarenta anos. Da turma que começara com
ele, uns se
aposentaram.
Outros, falecido. Dentre os remanescentes,
ainda na ativa, era Adalgiza quem tentava convencê-lo a
aposentar-se, para cuidar da saúde e aproveitar a vida. Mas o
teimoso Morelli insistia em ficar. Defendia-se, argumentando que, se
ela mesma
não o fazia, não havia razão para tal. Mas se Adalgiza
adiava a
decisão devia o fato ao amigo a quem não desejava abandonar. Já
Morelli receava que, indo para casa, talvez tivesse a mesma sorte de
muitos de seus pares.
Ele não tinha família. A mulher,
com quem convivera por mais de trinta anos, falecera há uns oito, e
o golpe, duríssimo, fora assimilado com dificuldade. Vez ou outra,
os colegas o
pegavam, choroso, num canto qualquer da repartição.
Nos corredores, corria a crença de que a saudade da falecida esposa não era o motivo pelo qual
Morelli rejeitava a aposentadoria, mas o pavor da solidão. Dora, sua
única filha, casara-se com um militar de alta patente e
transferira-se para o sul do país, há seis anos, por conta do
trabalho do marido. Vinha ao Rio de Janeiro somente para as festas
de fim de ano, período que coincidia com as férias do casal. E a
distância, medida em
quilômetros, dificultava-lhe
a assistência ao pai. Nos últimos dois anos, os problemas de saúde
de Morelli se agravaram. Desconfortos à altura do peito o levavam a
frequentes visitas ao departamento médico do órgão. E, não raro,
os especialistas aconselhavam-no a ir para casa. Em definitivo.
Mas o teimoso Morelli resistia.
Fato é que o setor onde
os amigos Morelli e Adalgiza
trabalhavam, assim como todo o órgão, foi-se renovando com o passar
dos anos. Uma decorrência natural do processo evolutivo. A
garotada, aprovada em concurso público, foi chegando devagar e
tomando conta do pedaço. O velho cedendo espaço para o novo. Como
deve ser. No entanto, Morelli, que era das
antigas, não só quanto ao
tempo de serviço mas quanto a forma de pensar, nutria um sentimento
romântico, defasado
e (por que não?) preconceituoso em relação aos colegas mais novos.
Entrara no serviço
público pela janela,
como se dizia, porque seu pai fora um respeitável juiz, alçado, em
fim de carreira, à condição de desembargador. Morelli tinha
orgulho do pai e, claro, de sua própria condição. Acreditava,
convicto, em ser detentor de um privilégio dinástico.
Do que ele não fazia ideia, porém, é que só em respeito ao nome
e ao histórico profissional de seu nonagenário progenitor que os
chefes o toleravam.
Tal esclarecimento se faz necessário
para entender que Morelli não gostava dos concursados. Mas não era
pelo fato de os jovens serem concursados. Ou de representarem uma
ameaça ao posto de que se apropriava por direito quase
divino. Ele colocava em
xeque a competência da garotada e o fazia abertamente, sem papas
na língua, como dizia
vovó.
Certo
dia, Evandro, homem inteligentíssimo, na casa dos trinta, estudioso
e graduado em Direito, que trabalhava ali há pouco mais de um ano, transitava pelo corredor próximo à sala onde Morelli e Adalgiza conversavam. E ouviu a queixa do colega:
- Quer
saber, Giza? Eu não troco a experiência dos mais velhos pela falta
de compromisso dos mais novos!
Evandro não retrucou. Fez de conta
que não era com ele. Apenas guardou para si o comentário do já
quase septuagenário colega. Cinco meses depois, toda a repartição
fora convocada para a sala do diretor. Era uma sexta-feira, final de
tarde. A notícia foi dada e todos comemoraram a aprovação de
Evandro para o cargo de Juiz de Direito, festejada com bolo,
salgadinhos, refrigerantes e sucos de frutas, por conta da administração. Evandro
se mostrou sensibilizado com a gentileza do corpo diretivo e dos
colegas. Mas não perdoou Morelli. Aproximou-se deste, ao fim da
comemoração e, pouco antes de deixar o recinto, disparou em
particular:
- Eu
não troco a inteligência da garotada pelo comodismo dos mais
velhos...
Morelli perdeu a cor, estacou ali.
Sentiu o golpe. Mais um golpe, duríssimo. O que dissera dias antes a Adalgiza, ele compreendeu, magoara o colega.
Evandro foi empossado no
novo cargo quinze dias após a comemoração. Já Morelli veio
falecer dezoito dias após a posse do ex-colega, a qual não
compareceu. Saiu do mundo de fininho,
talvez por vergonha. Ou por
tristeza, como disseram amigos próximos. Adalgiza, por sua vez,
sentida com a ausência do colega e amigo de longa data, decidiu
aposentar-se. E partiu, também, quatro meses depois.
Já Evandro, este atuou como
profissional do Direito de forma devotada e leal, o que se espera de
um magistrado. Soube do passamento dos ex-colegas somente um ano e
quatro meses depois de sua posse. E arrependera-se do que dissera a
Morelli. Porque mal se iniciara na carreira, maculara-a já com uma
tremenda injustiça.
(Filardi)