É provável que as pessoas reajam com estranhamento à pergunta “O
que...?” e a confundam com a óbvia “Quem...?”.
No caso específico de "O que é o Superman",
a distinção entre matéria e substância ainda assim não impede
que um número expressivo de entrevistados responda: - “É um
herói”. De fato, a personagem criada por Joe Shuster e Jerry
Siegel, em 1938, foi delineada como tal, mas antes de ser um herói o
Superman é algo que para essa mesma massa de entrevistados passa
quase despercebido: ele
é um alienígena.
E isso é curioso: o que nos leva a nutrir extremo fascínio por um
alienígena e não notarmos a sutileza? É pelo fato de o Superman
ser um herói? Ou de ser uma personagem da ficção? Se déssemos
de cara com um alienígena real, nós o trataríamos com a mesma
simpatia e devoção que devemos ao Superman? Não será provável
que a sensação de pânico nos faça (re)agir de forma hostil? Se
esse forasteiro de "carne e osso" fosse um herói em seu
planeta natal, deter-nos-íamos para avaliar se ele mereceria a nossa
repulsa? Por que tangenciamos a ficção, em vez de lidarmos de modo
racional com aquilo que desconhecemos (medo) ou com o que não
enxergamos (ignorância)?
À primeira vista, o rumo desta abordagem pode parecer inoportuno,
afinal a probabilidade de darmos de cara com um alienígena real
tende a zero. Esse não é o ponto. Em Krypton, seu planeta natal,
Kal-El1 não era um herói. Alcançou a Terra na condição
de exilado2
e tornou-se
herói aqui porque seus poderes extraordinários se manifestaram
quando adentrou a atmosfera de nosso planeta. Ou seja, houve uma
mudança de estado, de condição. E de mentalidade. Vivendo entre
nós, Kal-El se afeiçoou ao povo terreno, tomando para si a
responsabilidade de defender tanto o planeta que abraçou como seu
novo lar quanto seus habitantes. Em suma, tornou-se herói porque
optou por proteger a vida como um todo, sem concessões.
Mas, convém dizer, a transição de Kal-El para Superman não foi
simples. Também ele deparou com a dúvida, a ignorância, a
violência, o preconceito e o medo - reais ou imaginários, seus e
dos terráqueos -, pois estava consciente da sua condição
alienígena e da grandeza da missão a que se propôs. Esse
"atordoamento" momentâneo é normal quando se modifica um
cenário ou quando responsabilidades são assumidas. Afinal, ninguém
evolui no medo.
O ponto é que, de forma análoga, e guardadas as proporções, nós,
humanos, somos heróis. Não como o Superman; não fomos
privilegiados com visão de raio-x, superforça ou incrível
velocidade, mas, assim como ele, somos indivíduos, únicos,
indivisíveis: cada um com suas potencialidades e limitações,
desejos e frustrações, vontades e decepções, objetivos e lutas.
Ele, o herói extraterreno, simboliza o que há de melhor em nós:
gravados nos genes humanos estão: nossa herança histórica, nossa
memória e nosso conhecimento, acumulados nesta e em outras vidas; e
variáveis como disciplina, bravura, determinação, caráter,
proatividade (postura diante da vida), humildade, bondade, compaixão,
perseverança, fé e amor. Tudo isso alinhado à nossa predisposição
para o aprendizado, nossa curiosidade ancestral pelas coisas do
mundo e nossa tenacidade no enfrentamento das adversidades. Estas
são as forças compensatórias que tecem o equilíbrio no mundo, a
energia que podemos e devemos trabalhar em nós e oferecermos uns aos
outros. É essa a ideia que expressa o real fundamento da pergunta
que os adultos fazem às crianças: - “O que você quer ser,
quando crescer?”, pois raros são os que se esforçam para
que a resposta seja: - "Uma
boa pessoa".
Essas forças compensatórias, convém ressaltar, nos são caras.
Qualquer pessoa que traga consigo o peso do equilíbrio e do
bom senso é um alienígena. Se exilássemos o medo, a dúvida,
a violência, a ignorância e o preconceito, tomaríamos para nós a
responsabilidade real de dedicarmos ao nosso mundo e àqueles que nos
estão próximos o cuidado que lhes é devido. Este é o nosso
desafio, nossa missão primordial. Trata-se de assumirmos o nosso
papel em um processo holístico de correição, de aperfeiçoamento,
de transmutação e de progresso contínuos. É isso o que chamamos
de evolução. Assimilando o conceito, compreenderemos então
o fascínio que o Superman exerce sobre nós, esse estranho
sobrenatural que, mesmo derivado de uma obra de ficção, mantém-se
devido a características essencialmente humanas as quais regem tudo
que ousamos tocar.
1 nome do Superman em seu planeta, Krypton.
2 lançado no espaço em uma cápsula por seu pai, Jor-El,
momentos antes de Krypton explodir.
(Francisco Filardi)