Meu primeiro contato mais imediato com
a morte se deu quando eu tinha dez para onze anos. O ano era 1976.
À época, eu cursava a antiga quinta série do curso ginasial (hoje,
sexto ano do ensino fundamental), num colégio situado na rua Conde
de Bonfim, no bairro da Tijuca. Essa unidade de ensino viraria
cinzas pouco mais de três anos depois, demolida pela irrefreável
marcha do progresso. Para nós, alunos, uma grande tristeza. Mas
houve outras, tão significativas e indeléveis quanto.
Na minha sala, estudava
o também pré-adolescente
Adilson, apelidado “china” devido aos olhos um tanto puxados.
Tanto eu quanto ele fazíamos
parte de uma meia dúzia que se reunia na hora do recreio, ou mesmo
antes das aulas, para jogar futebol de chapinha no
pátio (não na quadra de esportes),
nos dias em que
o inspetor escolar (de nome
Jesus!) não nos liberava a
pelota. O futebol de chapinha, para os que não estão familiarizados
com a expressão, não precisava de muito: apenas uma tampinha de
refrigerante, dois pares de camisas ou de mochilas, para delimitar as
áreas correspondentes às traves,
e um bando de moleques fedorentos correndo para cá e para lá, atrás
da tal chapinha. Quando nos sobrava um dinheirinho, íamos até a
papelaria do “seu” Moreira, que ficava em
rua próxima do colégio,
para comprar bolas de borracha coloridas
(dessas que cabem na palma da mão),
fabricadas pela Mercur, para a mesma finalidade. Não
faço ideia de quantas bolas perdemos para a Conde de Bonfim (que
corria paralela ao pátio), mas
essa
era
uma das
muitas
diversões que amávamos e hoje recordamos com imensa
gratidão e saudade.
Lembro-me bem do “china”: gago, de
baixa estatura, cabelos claros e encaracolados (como devem ser os de
um anjo, suponho), a pele bem alva. Trazia consigo uma maleta com
alça, conhecida como “007” (moda, à época), contendo, além do
material escolar, um sanduíche caseiro, feito com pão de forma, ou
um pacote de biscoitos Mirabel. Era sorridente e muito querido.
Estava sempre conosco e participava ativamente tanto das atividades
curriculares (sobretudo, das aulas de educação física) quanto das
deliciosas bagunças que aprontávamos quando não havia aula.
Se a memória não me trai, aconteceu
no mês de agosto. O avô do “china” era colecionador de armas
de fogo. Se havia sido militar, não sabíamos, pois Adilson nunca
nos contou. Mas é fato que seu avô as tinha em casa. Um absurdo. A
notícia chegou à escola, sendo levada ao conhecimento da professora
Marisa, de Estudos Sociais, que a essa altura lecionava para a nossa
turma: na véspera, Adilsinho estava a ajudar o avô a limpar um
revólver da coleção, quando um de seus dedos prendeu-se no
gatilho. Na tentativa de desvencilhar-se, a arma, que estava
estupidamente carregada, disparou, atravessando o coração do meu
amigo. A morte lhe veio imediata. Quando a história vazou para a
turma, fui tomado por um misto de perplexidade, indignação e
incredulidade. Como ele não poderia estar mais entre nós, se na
véspera ele havia assistido às aulas conosco? Como?! Foi essa a
primeira vez que percebi o quanto a morte era absurda (e injusta).
Mas não consegui chorar. Não ali.
Ao chegar em casa, fui direto para o
chuveiro; lá, sim, desabei num choro incontido. Queria que a água
corrente livrasse meu coração daquelas lágrimas cheias de tristeza
e saudade, que as levasse
para longe. Meus pais nunca souberam disso. E
foi por mera vergonha. Não queria que me vissem chorando.
O que isso custou a um meninote de
apenas dez anos só um psicólogo me poderá dizer. O fato é que lá
se vão quarenta anos. Talvez o
pequeno “china” tenha-se
tornado mesmo um anjo. Assim
espero.
(verídico - Francisco Filardi)