Era uma senhorinha discreta e sem atrativos. Dessas que passariam longe do interesse ou da curiosidade de estranhos, exceto pela tintura nos cabelos. Violeta (a tintura, não o seu nome). E era amarga feito fel. As amigas diziam que seu temperamento oscilava entre o intratável e o insuportável, daí o apelido: Jiló. E, como não bastasse a desgraça da alcunha, a mulher, ainda por cima, era metida a intelectual. Ah, era isso!
Certa vez, um badalado programa semanal de perguntas e respostas da TV, que era transmitido ao vivo e com participação de plateia, abriu inscrições para novos participantes, o que deixou a Jiló em polvorosa. Afinal, era fascinada pelo programa. Assistira-o um “zilhão” de vezes, no conforto da sala de estar, sempre na companhia das amigas. Respondia às perguntas “na ponta da língua”, como dizia vovó, e com tamanho desembaraço e rapidez que deixava a audiência doméstica perplexa. “Um gênio!”, atestavam as senhoras sobre a intelectual ranheta. E foi com o aval da turma que a Jiló se dirigiu ao estúdio da emissora, para sacramentar sua participação.
O programa ia ao ar nas noites de sábado e tinha ótima audiência. O esquema das apresentações não era lá muito diferente do das emissoras concorrentes, ainda assim o público adorava. Quatro participantes, lado a lado no palco, aventuravam-se a responder sobre temas variados, podendo dar novos palpites até no máximo um minuto para cada pergunta.
Na noite de estreia da Jiló na TV, o programa ia bem com a novata respondendo às questões com a firmeza de um competidor experiente. Já havia respondido umas cinco ou seis, até que o apresentador fez-lhe a seguinte:
- “Que filme do cineasta Glauber Rocha foi lançado em 1969?”
A Jiló até que era fã de Glauber, mas o seu “calcanhar de Aquiles” era a dificuldade danada para lembrar dos títulos dos filmes. Assistira a inúmeras produções de diversas nacionalidades, conhecia atores, diretores e até outros nomes das fichas técnicas, mas os títulos… Ela pensou, coçou a cabeça, puxou lá do “fundinho” da memória e travou com o apresentador do programa um duelo inesquecível (pelo menos para o público):
- A maldade do guerreiro contra o santo dragão!
- Não.
- O dragão guerreiro contra a maldade do santo!
- Não.
- O santo da maldade contra o dragão guerreiro!
- Não.
- O santo guerreiro contra a maldade do dragão!
- Não!
A essa altura, os demais participantes, desorientados com as respostas da senhorinha violeta, também já não lembravam o título correto do filme. A Jiló seguia tentando:
- O santo dragão contra a maldade do guerreiro!
- Não.
- O guerreiro dragão contra o santo da maldade!
- Não.
- O santo dragão da maldade contra o guerreiro!
- Não.
- O santo guerreiro da maldade contra o dragão!
- Não.
- O dragão do guerreiro contra a santa maldade!
- Tempo esgotado!
Depois de tanto “bater na trave”, o minuto se foi, o cronômetro parou e a Jiló ficou tão furiosa que quase soltou um palavrão. Ao vivo. Tanto se preparara para aquele momento… que acabaria por deixar o programa devido a uma "pegadinha" (era o que ela achava).
O resumo da ópera foi o seguinte: os demais participantes da atração, para lá de enrolados no novelo da Jiló, também erraram seus palpites, sendo igualmente desclassificados; o público que lotou o auditório da emissora perdeu o rumo e contorceu-se nas poltronas de tanto rir com os disparates dos concorrentes; finalmente, por conta das tantas respostas absurdas, nem mesmo o apresentador do programa fazia ideia de qual era o nome correto do filme porque, em meio a trapalhada, deixara escapar a ficha técnica fornecida pela produção.
Mas o pior estaria por vir. Chateada com a precoce eliminação do programa, Jiló foi parar na casa da vizinha Rodomira, onde estavam reunidas as amigas e algumas conhecidas do prédio. A recepção foi uma caçoada só:
- Ah, foi uma santa maldade a sua desclassificação! - disse a anfitriã, logo que a Jiló passou pela porta.
- É mesmo. - concordou Filomena – Você lutou como uma guerreira, mas o que aquele santo dragão (o apresentador) fez foi uma tremenda maldade!
- Não se chateie, Jilozinha, apesar do dragão e da maldade, você foi uma santa guerreira! - Tentou alegrá-la Josefina.
Mas a Jiló não deu a mínima para a implicância das amigas. Inconformada, insistia consigo mesma em relembrar as respostas que dera ao apresentador do programa, mas isso só serviu para desanimá-la ainda mais. Até que desistiu. Esgotada, espremeu os olhinhos no minúsculo par de óculos e, com o olhar distante, perguntou uma última vez às amigas:
- Qual é mesmo o título do filme?
As senhoras não acreditaram no que acabavam de ouvir. Elas, que entendiam “lhufas” de cinema – e menos ainda de Glauber -, entreolharam-se e, por fim, desabaram em ruidosa gargalhada. Isso enquanto a pobre Jiló afundava o rosto entre as mãos, embaraçada e cheia de vergonha.
(de Francisco Filardi)