Junia Cajazeiro (Pediatra)
- Posso te dar um presente?
- Mas por que um presente?
- Mas por que um presente?
- Primeiro me diz: você aceita um presente?
- Olha, não precisa...
- Mas eu quero te dar. Eu trabalho com aura, você sabe o que é aura?
- Sim, eu sei.
-
Então, você tem a aura bonita. É por isso eu quero te dar um presente.
Sabe, desde quando eu cheguei aqui, você foi a primeira pessoa que me
olhou nos olhos e tratou bem meus filhos. Eu não queria estar morando na
rua. Eu não queria estar aqui. Eu queria estar na minha casa, mas eu
não posso... (Lágrimas nos olhos. De nós duas).
-
Eu vi que você gosta deste olho (apontando para meu pingente de olho
grego). Ele dá proteção. Então eu vou te dar esta pulseira. Eu que fiz
de macramê.
Essa
é uma das muitas histórias que vivi com MSF: pacientes e suas famílias,
passando por dificuldades que eu espero jamais sentir na pele. A
dimensão do que é sair da sua casa, do seu país, em busca de comida,
medicamentos, um mínimo de qualidade de vida. Fugir nunca foi uma opção
para eles: era uma necessidade. Atendi vários casos como esse e é
incrível perceber o quanto isso vai nos rasgando aos poucos,
devagarinho. Uma dor quase imperceptível, mas presente o tempo todo: nas
discussões de casos, na hora do almoço, nos nossos momentos livres.
E
somente agora, ao sair do projeto, me permiti sentir essa dor. Assim
como no dia em que, ao perguntar a um menino de 3 anos de idade onde ele
sentia dor, sua resposta foi, baixinho no ouvido da mãe para que eu não
ouvisse, “a barriga, mãe, tenho fome”. Fui saber que eles não comiam
desde o dia anterior, pois não chegaram a tempo no local de distribuição
de comida. Também não conseguiram alimentos (frutas das árvores nas
ruas) naquela manhã, porque a mãe tinha medo de perder a consulta
comigo.
São muitas histórias, muitos sentimentos misturados e a certeza de que temos muito a fazer.
Uma
vez me perguntaram se nessa vida de trabalho humanitário, com tantas
idas e vindas, a gente se acostuma com despedidas. A cada vez que me
despeço, de casa, dos amigos de sempre, da família e depois dos amigos e
pacientes que fiz no projeto, essa pergunta reaparece na minha cabeça. E
a resposta sempre foi não. Não me acostumei a me despedir. É sempre um
sentimento misto de alegria por retornar à minha casa ou de iniciar um
novo projeto e o coração apertado, de deixar família, amigos, cachorro
ou a equipe e os pacientes.
Sempre
pensamos que podíamos ter feito mais. Dá um certo incômodo ao pensar
que aquelas pessoas que se fizeram tão especiais e presentes na sua vida
serão boas lembranças, mas talvez nossos caminhos não se cruzem mais.
Dessa vez não podia ser diferente: me despedi há pouco do projeto e da
cidade de Boa Vista.
Quase
que como num ritual, fui me despedir daqueles pacientes que de certa
forma me marcaram. Estava atendendo no centro de saúde local e também
fiz alguns atendimentos em abrigos para refugiados venezuelanos que
temos na cidade. Boa Vista tem 11 abrigos oficiais e muitas ocupações
espontâneas de venezuelanos que vieram em busca de melhores condições
para sobreviver.
Em
um desses atendimentos nos abrigos, fui a Pintolândia, que é o abrigo
para a população migrante indígena na cidade. Lá, conheci Maria Isabel.
Menina linda que estava com muitas lesões de pele infectadas. Se sentia
envergonhada porque as lesões eram grandes e se espalhavam por todo o
corpo, o que a incomodava. Tive de tratá-la com medicamentos mais fortes
e nesse tratamento ficamos próximas, pois acompanhei de perto sua
evolução. Então, decidi ir no abrigo para me despedir.
Cheguei
lá e ela estava dormindo. A vi deitada em sua rede. O senhor que me
acompanhava queria acordá-la. Falei que não precisava. Segui para ver
outros pacientes e falar com algumas pessoas. Quando estava saindo do
abrigo escuto um grito: "olá, dotôra!". Claro que reconheci sua voz.
Olho para trás e lá estava ela, sorridente com um vestido novo. Me
aproximei, ela me mostrou seu vestido e conversamos um pouco. Contei
para a mãe dela e a ela que estava indo embora. A mãe dela me olhou e
falou: "Isabel, agradece a dotôra!" Isabel veio e me deu um abraço e um
beijo. Para mim nunca será fácil me despedir. Isabel ficará em minha
memória, assim como muitos outros pacientes, dos quais me recordo e fico
imaginando como devem estar.
Minhas crianças pelo mundo.
fonte: publicado no site "Médicos sem Fronteiras", em 14/11/2019