Ricardo estava feliz. Comprara um apartamento na zona norte do Rio
de Janeiro e fora um dos primeiros a habitar o condomínio. A
unidade, situada no segundo andar de fundos do terceiro bloco de um
prédio sem pilotis, dispunha de dois quartos, sala, cozinha, banheiro
social, área de serviço e uma pequena sacada, de onde é possível
contemplar o pôr do sol (na zona norte, é lindo).
Apesar do recente divórcio, Ricardo não teve dificuldades em sua
readaptação à vida de solteiro
e, desde que se instalara em seu novo lar, permitia-se a prática de
algo que jamais fizera enquanto casado: andar despido em casa. Mal
chegava do trabalho, à noite, livrava-se do terno; relaxava por uns
dez minutos sob a ducha morna e metia-se num roupão atoalhado. Mas
logo se livrava também deste e circulava peladão pelo apartamento!
Dessa forma, ele acreditava gozar da mesma sensação de leveza
experimentada pelo primeiro homem a habitar o mundo. Até que...
Em certo fim de tarde, uma senhora e seu cachorrinho pinscher
estavam a passear sob a sacada de Ricardo, quando ela,
distraída pelo voo de um passarinho, estacionou a mirada justo no
segundo andar. E deparou com o vizinho na sala. Pelado. Ele, que
não percebera a indiscrição da madame, cantarolava na maior
tranquilidade, enquanto seguia nos afazeres domésticos.
Ainda que tenha levado um tempo para recuperar-se do que acabara de
ver (!?), a tal senhora não tardou em consignar reclamação no
livro do condomínio. Quando o assunto veio à baila, na reunião de
condôminos, Ricardo protestou:
- Isso é um absurdo! Vocês pensam o quê? Que sou um
exibicionista barato?! Eu tenho direito a ficar pelado naqueles 50m²
que me pertencem! O problema é de quem fica sob a minha sacada, a
bisbilhotar o que não deve!
Foi uma gargalhada geral. Os condôminos caíram na pele da pobre
senhora por considerarem que o assunto não devesse constar no livro
de reclamações. Chamaram-na de pudica,
mal amada, carola,
sem macho e tudo o
mais. O repertório variado só ampliava a voltagem da situação.
Jarbas, que era o síndico da vez, segurou o riso por baixo do farto
bigode, fingindo seriedade, para não constranger a madame. E
perguntou a Ricardo se ele tinha o hábito de ficar pelado na sacada.
- Na sacada?! Nunca! Eu só o faço da porta
da sacada para dentro! - garantiu o reclamado.
- Certo... certo, Sr. Ricardo, mas diga-me uma coisa: em casa, você
faz tudo pelado, pelado mesmo?
- Peladinho da silva!
- Mas... com as cortinas abertas?!
- Parcialmente
abertas, para não prejudicar a ventilação, que fique claro! E qual
o problema? Estou em meu apartamento!!! - retrucou Ricardo.
Ele, que para 52 de idade era bem conservado e de porte razoavelmente
atlético, chegou a ouvir de algumas vizinhas um "aí,
Ricardão!" e, de outras, aquele "fiu-fiu!"
comprido que lhe massagearam o ego.
Enquanto rolava a algazarra, alguns, dentre os espectadores que ali
se divertiam com a inédita discussão, telefonavam de seus celulares
para os parentes, insistindo para que descessem ao salão de eventos
e não perdessem aquele barraco digno de humorístico de TV.
Mas a apoteose do bafafá foi quando Jarbas perguntou à senhorinha o
que aconteceu logo em seguida:
- Eu, eu... - gaguejou a tal.
- "Eu, eu...",
o quê? - pressionou o síndico.
- Eu... fiquei paralisada, pois jamais vi tamanho absurdo!
- Mas o que a senhora viu de tão absurdo, a ponto de deixá-la...
hã, "paralisada"?
- Aquilo... -
respondeu ela, cheia de pudor.
- Aquilo o quê? O penduricalho
do Sr. Ricardo? - arrematou Jarbas.
Foi um carnaval. Ricardo, às gargalhadas, foi acompanhado em
uníssono pela plateia. O que era drama para a minúscula senhora não
passava de comédia para os vizinhos. Ela, a essa altura, já
procurava um buraco onde pudesse enfiar a cara.
- Fiquei em estado de choque! - protestou, num arroubo quixotesco. -
Como eu poderia mover-me? Nunca vi algo assim, em toda a minha vida!
- Então esse é o problema! - cochichou um dos espectadores para a
esposa, ao lado. - Ela nunca vira aquilo!
- E ambos riram.
É claro que de nada valeram os protestos da madame. Houve até quem
acreditasse que ela estava mais curiosa que indignada. E foi por aí
que Jarbas insinuou:
- Mas a senhora, digamos, não teria permanecido sob a sacada do Sr.
Ricardo por outra razão?
- Como assim?
- Talvez a senhora tivesse prolongado um bocadinho a sua permanência
para ver algo com... maior
clareza, já que estava tentando entender a situação.
- Mas que impertinência!!! Eu só estava de olho num passarinho! -
disse a madame, sem maldade.
Mas a turma não perdoou, afinal não ficou claro a que passarinho
ela estava se referindo. A balbúrdia, óbvio, potencializou e
Jarbas, ao lembrar que a indignada era solteirona, emendou:
- Aposto que sim! - disse, dando uma piscadela para Ricardo. Ainda
assim, o síndico não sossegou:
- Sabe, madame... a senhora poderia ter corrido, gritado, surtado,
desmaiado, qualquer coisa,
já que estava apavorada!
- É que... é que... - gaguejou, mais uma vez, a já trêmula
senhora.
- "É que... é que...",
já entendi, madame! Está encerrada a reunião! - decretou o
síndico.
A coitada, jururu que só, deixou o salão de eventos sob uma chuva
de gargalhadas e provocações dos vizinhos. Nunca dantes na
história daquele condomínio houve outra reunião como aquela!
Bem, o tempo passou, a vida seguiu seu curso, como haveria de ser, e
a tal senhora (que nunca mais deu as caras em outra reunião do
condomínio) deixou de levar seu cachorrinho para passear sob a
sacada de Ricardo que, a propósito, segue circulando peladão em seu
apartamento. É pelo seguinte: Jarbas, que era um sacana de primeira,
levara o tema à votação daquela plateia inflamada (após a madame
deixar o recinto, claro) e, uma vez aprovado por esmagadora maioria e
devidamente consignado em ata, deliberou-se que ficar
pelado em próprio domínio não configurava prática atentatória à
moral e aos bons costumes. Tudo resolvido e todos felizes
naquele conjunto habitacional (menos a jururu senhora, claro).
O único "porém" é que, desde a controversa reunião, a
plateia feminina sob a sacada do agora famoso vizinho do bloco três
vem aumentando de forma considerável. Bravo, Ricardo!
(de Francisco Filardi, finalizado em 19.12.2016)
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