Criada
e produzida
por
Robert e Michelle King1
para
a rede CBS de televisão,
a série The
good wife – pelo direito de recomeçar2
(2009-2016) explora os bastidores de escritórios de advocacia, dos
Tribunais de Justiça e da Política. Com elenco acima da média e
roteiros ágeis, sua trama tem por foco a ascensão e a queda da
advogada Alicia Florrick (Julianna Margulies), que retoma a carreira
após hiato de 13 anos.
Ao
longo de suas sete temporadas, The
good wife
escancara
que a Ética é vista tanto pelo Direito como pela Política como
mera conveniência administrativa, à mercê de um complexo
enredamento de interesses individuais e/ou de grupos específicos.
A
corrupção é apresentada em sua forma crua: enraizada nas relações
humanas, no tecido social e também na família. A disputa por Poder
- uma constante na série - faz os envolvidos oscilarem na corda
bamba da moral, enquanto se arriscam por terrenos movediços e
tremendamente hostis. Advogados, Promotores, Juízes, Assessores e
Políticos são parte de um jogo e basta um movimento em falso para
colocá-los sob os holofotes da imprensa e/ou na mira da Polícia ou
do FBI.
O
buraco fica cada vez mais fundo: parceiros de longa data se tornam
concorrentes vorazes; inimigos declarados se tornam aliados da vez.
E para cada novo cenário, um novo estratagema. Ou seja, é um
sistema autofágico.
Há
dois
divisores de águas em
The
good wife:
o primeiro, dá-se a partir da terceira temporada, quando o tempo de
vídeo de personagens como a mãe de Peter Florrick (esposo de
Alicia) - a enxerida Jackie (Mary Beth Peil) -, e seus filhos Zach
(Graham Phillips) e Grace (Mackenzie Vega) passa a escassear, dando
pistas de sua impopularidade; o segundo, ocorre com a morte forçada
de Will Gardner (seu intérprete, o ator Josh Charles, deixou a
trama, a pedido) na quinta temporada, o que faz a
série
a perder força, ainda que tenha rendido alguns bons episódios em
suas duas últimas temporadas.
ATUAÇÕES
DESTACADAS
Além
dos roteiros elaborados, a excelência da série está em seu elenco
afiado, no qual se destacam, entre outros, Alan
Cumming
(Eli Gold), Sarah
Steele
(Marissa Gold, filha de Eli), Michael
J. Fox
(como o cínico e trapaceiro advogado Louis Canning), Carrie
Preston
(a impagável Elsbeth Tascioni) e Dylan
Baker
(o dissimulado homicida e maníaco sexual Colin Sweeney).
Além
desses, Cush
Jumbo
(Lucca Quinn) e Jeffrey
Dean Morgan
(Jason Crouse) se revelaram ótimas contratações para a sétima e
última temporada.
O
QUE NÃO FUNCIONA EM THE GOOD WIFE
Em
toda série, há imperfeições, equívocos ou mesmo erros crassos,
seja por excessos, seja pelos habituais clichês. The
good wife,
é claro, não escapa disso. Vejamos algumas situações que não
fariam falta, caso deixadas de lado:
1)
a apelativa cena de tribunal em que Louis Canning usa uma máscara de
inalação (6a
temp.) para despertar a simpatia do magistrado; a propósito, Canning
não é o único a se valer desse tipo de artifício: sua colega de
profissão Patti Nyholm (Martha Plimpton) ignora a noção de bom
senso e vai ao gabinete de um juiz conduzindo um carrinho de bebê,
com idêntico propósito. O magistrado não se dá conta da manobra,
encanta-se com a criança e o momento
mãe
de Nyholm,
numa clara insinuação de que juízes são manipuláveis (no
contexto da série);
2)
em O
julgamento (The
trial,
6a
temp.), Jackie telefona para Alicia e solicita sua presença na
escola de Grace, onde o diretor está de posse de um bilhete no qual
a advogada ameaça de morte um professor. A imprudente Grace
entregara o bilhete à professora, numa aula de Moral e Cívica (!),
para esclarecer se tal teor estaria protegido pela liberdade de
expressão. Na sala do diretor, Alicia alega que aquilo não passara
de uma brincadeira
(de mau gosto, diga-se), entre mãe e filha, que não deveria ter
saído do círculo familial. Decerto, uma péssima ideia dos
roteiristas do episódio (Robert
e Michelle King).
3)
o uso de e-mails profissionais para uso pessoal, contendo mensagens
comprometedoras, atitude infantil dos advogados;
4)
o recurso de usar um dublê de Will Gardner na 6a
temporada, numa recordação de Alicia. Dá para ver que não se
trata de seu intérprete original Josh Charles, e o resultado é
ruim;
5)
a hipocrisia de Grace Florrick, ao criticar a mãe sobre sua relação
extraconjugal com Will Gardner (6a
temp.). Segundo ela, o comportamento de Alicia é avesso
aos princípios cristãos.
Mas a própria Grace dá as suas escapulidas para paquerar seu
colega de escola Connor, às escondidas (em Lá
vem o juiz,
4a
temp.), o que também não é exemplo de comportamento cristão.
Além disso, a cristã
de carteirinha
se revela uma mercenária de quinta, ao reivindicar aumento de
salário e a exigir direitos de funcionária
à própria mãe. No episódio Shot
(7a
temp.), ela diz à Alicia que pretende seguir a carreira do Direito;
6)
o desnecessário casamento entre Jackie Florrick (Mary Beth Peil) e o
advogado Howard Lyman (Jerry Adler), na 7a
temporada;
7)
as frequentes interrupções de conversas, momentos íntimos e até
relações sexuais: uma porta é aberta, um celular toca: clichê
repetido à exaustão, ao longo da série.
Além
disso, observamos os inexplicáveis sumiços do traficante Lemond
Bishop (Mike Colter), do promotor Finn Polmar (Mattew Goode) e da
investigadora Robyn Burdine (Jess Weixler), na 7a
temporada. De outra forma, Código
aberto
(6a
temp.) resgata três personagens quase esquecidas: o especialista em
balística Kurt McVeigh (Gary Cole), o juiz Charles Abernathy (Denis
O’Hare) e a advogada Nancy Crozier (Mamie Gummer, filha da atriz
Meryl Streep).
EPISÓDIOS
EM DESTAQUE
The
Good Wife
traz à luz da discussão algumas questões que envolvem o uso da
tecnologia. Dada a atualidade do tema, merecem destaque os episódios:
Distração
(Shiny
objects,
6a
temp.)
Diane
Lockhart (Christine Baranski) se compromete com Alicia a enviar por
e-mail os arquivos de um caso que irá ajudá-la num julgamento.
Entretanto, ao acessar a respectiva pasta em seu computador, Diane
visualiza mensagem informando que seus arquivos foram encriptados,
havendo um botão para decodificá-los.
Mesmo hesitante, Diane clica no botão e todos os computadores do
escritório sofrem apagão imediato. Em seguida, uma segunda mensagem
exige a transferência de 50 mil dólares para uma conta não
identificada, no prazo de 72 horas, para que o escritório receba a
chave de decriptação, caso contrário os arquivos serão deletados
dos computadores de forma permanente. Trata-se de ataque
cibernético por ransomware
(malware que sequestra dados, bloqueia o acesso da vítima ao próprio
sistema operacional e exige pagamento de resgate,
não havendo aí, porém, garantia de que o invasor cumprirá com os
termos da negociação), um alerta para que usuários de computadores
não cliquem em ícones, gifs
animados ou links
suspeitos no corpo de uma mensagem de e-mail, programas de
conversação ou redes sociais. A situação de Diane é agravada
ainda pelo fato de o escritório não dispor de backup dos arquivos
sequestrados.
Não
tripulado
(Unmanned,
6a.
temp.)
O
episódio trata da invasão
de privacidade. Um cliente de Diane, terapeuta que atende em seu
domicílio, alega que um drone sobrevoa sua casa todos os dias, em
horários diversos. A parte reclamada se defende alegando que se
trata de varreduras
de segurança.
Segundo o terapeuta, alguns de seus clientes desistiram de seguir
com as consultas, por conta dessa invasão de privacidade.
Incomodado, o reclamante acaba por atirar e derruba o drone, ao que a
empresa reclamada move ação indenizatória por perdas e danos.
Independente de quem tenha razão, o episódio mostra a
empregabilidade nociva dos drones: podem portar armas de fogo (de
pistolas a metralhadoras), de efeito devastador; são capazes de
realizar imagens térmicas e podem até incorporar roteadores wi-fi
que induzem computadores pessoais desprotegidos a usá-lo, com a
finalidade de furto de dados pessoais (inclusive bancários). A
causa envolve a Administração Federal da Aviação quanto à
legislação vigente sobre a altura mínima admitida para o voo de
drones.
Código
aberto
(Source
code,
6a
temp.)
Trata
dos riscos do uso de impressoras 3D para a reprodução e
distribuição não controlada de armas de fogo pela internet. Como
se trata de um programa de código aberto, a distribuição pode
ocorrer poucas horas depois da baixa do arquivo. Tais armas, embora
sejam reproduções em plástico, disparam projéteis reais. Não
são detetáveis, rastreáveis ou regulamentadas. Há outro senão:
sendo um programa de código aberto, pode sofrer alterações
(aperfeiçoamentos) realizadas pelo próprio usuário, o que pode
tornar única cada arma reproduzida em 3D. É preciso considerar
ainda a possibilidade de falha na impressão e até as condições
climáticas, que podem interferir no funcionamento da impressora,
causando falhas que podem comprometer a integridade física do
usuário.
Conduzido
(Driven,
7a
temp.)
Alicia
Florrick, ladeada por Cary Agos (Matt Czuchry), interroga Anthony
Edward Dudewitz (Joey Slotnick), especialista em tecnologia e criador
de um software de direção difusa, batizado T-Port. Trata-se de uma
tecnologia auxiliar para veículos automotores que permite direção
autônoma (sem a participação de pessoas). O que está em questão,
para Alicia, é se tal tecnologia teria sido responsável por colocar
sua cliente numa cadeira de rodas. O veículo causador do acidente,
equipado com o T-Port, inclui um HD com função similar a dos
tacógrafos, o qual teve seus dados apagados, em razão do acidente.
Alicia investiga se tais dados foram apagados de forma acidental ou
intencional. A advogada introduz o assunto:
-
Sr. Dudewitz, o que acha sobre o futuro da IA (inteligência
artificial)?
Ela
reformula a pergunta:
-
O que acha da IA?
-
O que quer saber? Pergunte. - responde Dudewitz.
-
Corremos risco com a IA?
-
Acho que ela fica mais inteligente a cada dia. Aprende nossos
limites e os limites dela. Evolui. Haverá ajustes após a
dominação...
Alicia
intervém:
-
Desculpe interromper. Como assim, dominação?
-
A singularidade. Quando o sistema pode melhorar sozinho
repetidamente; quando ele for melhor em recalibrar, expandir e
reproduzir-se do que nós, o breve reinado da humanidade chegará ao
seu inevitável fim. [...].
Cary
Agos prossegue:
-
Quem mais acha que a IA é potencialmente perigosa?
-
Elon Musk, Stephen Hawking, Bill Gates. - responde o especialista.
-
Não é uma posição atípica?
-
É certamente atípica. Só gênios pensam assim, como eu. A
massa está ocupada demais vendo TV
(grifo nosso).
Alicia
retoma o interrogatório:
-
Última pergunta: como acha que o disco se apagou?
Ela
reformula a pergunta:
-
Acha que o carro é capaz de apagar a própria memória?
-
Sim, eu acho.
-
E, se acredita nisso, o programa poderia ignorar as funções de
segurança?
-
Eu não diria isso. - responde o especialista, demonstrando
desconforto.
-
Mas se acha que a IA pode transcender a ideia original dos criadores
e criou a teoria da direção difusa para tornar o carro mais
agressivo,
mais
humano,
ele não poderia ignorar as medidas de segurança? Sr. Dudewitz,
você tem uma resposta para isso?
-
Sou inteligente.
-
Um gênio. - confirma Alicia.
-
Sim. E criei algo tão complexo que não posso afirmar o que ele
pode, ou não, fazer.
-
Então, ele pode ter colocado aquela mulher - diz Alicia, apontando
para sua cliente - na cadeira de rodas?
-
É possivel. - conclui Dudewitz.
O
episódio foi exibido originalmente nos Estados Unidos em 15/11/2015.
Indicados
ao Writers Guild of America Awards em
vários
anos,
Robert e Michelle King não criaram, com
The good wife,
tão somente uma série dramática para a TV, mas tremendas
aulas sobre Direito,
Ética profissional e Política.
É de se tirar o chapéu.
(de
Francisco Filardi)
NOTAS
1
a série foi produzida em associação com os irmãos Tony e Ridley
Scott.
2
The
good wife
deu origem ao spin-off The
good fight
(2017-2022), com a participação de apenas parte de seu elenco
original (Christine Baranski, Sarah Steele, Cush Jumbo e Zach
Grenier). Já a série policial Elsbeth,
também derivada, terá seu primeiro episódio exibido nos Estados
Unidos em 29/02/2024, pela rede CBS, com Carrie Preston reprisando a
atuação da divertida advogada.