sábado, 13 de abril de 2019

UM ESTRANHO ENTRE NÓS


É provável que as pessoas reajam com estranhamento à pergunta “O que...?” e a confundam com a óbvia “Quem...?”. No caso específico de "O que é o Superman", a distinção entre matéria e substância ainda assim não impede que um número expressivo de entrevistados responda: - “É um herói”. De fato, a personagem criada por Joe Shuster e Jerry Siegel, em 1938, foi delineada como tal, mas antes de ser um herói o Superman é algo que para essa mesma massa de entrevistados passa quase despercebido: ele é um alienígena.

E isso é curioso: o que nos leva a nutrir extremo fascínio por um alienígena e não notarmos a sutileza? É pelo fato de o Superman ser um herói? Ou de ser uma personagem da ficção? Se déssemos de cara com um alienígena real, nós o trataríamos com a mesma simpatia e devoção que devemos ao Superman? Não será provável que a sensação de pânico nos faça (re)agir de forma hostil? Se esse forasteiro de "carne e osso" fosse um herói em seu planeta natal, deter-nos-íamos para avaliar se ele mereceria a nossa repulsa? Por que tangenciamos a ficção, em vez de lidarmos de modo racional com aquilo que desconhecemos (medo) ou com o que não enxergamos (ignorância)?

À primeira vista, o rumo desta abordagem pode parecer inoportuno, afinal a probabilidade de darmos de cara com um alienígena real tende a zero. Esse não é o ponto. Em Krypton, seu planeta natal, Kal-El1 não era um herói. Alcançou a Terra na condição de exilado2 e tornou-se herói aqui porque seus poderes extraordinários se manifestaram quando adentrou a atmosfera de nosso planeta. Ou seja, houve uma mudança de estado, de condição. E de mentalidade. Vivendo entre nós, Kal-El se afeiçoou ao povo terreno, tomando para si a responsabilidade de defender tanto o planeta que abraçou como seu novo lar quanto seus habitantes. Em suma, tornou-se herói porque optou por proteger a vida como um todo, sem concessões.

Mas, convém dizer, a transição de Kal-El para Superman não foi simples. Também ele deparou com a dúvida, a ignorância, a violência, o preconceito e o medo - reais ou imaginários, seus e dos terráqueos -, pois estava consciente da sua condição alienígena e da grandeza da missão a que se propôs. Esse "atordoamento" momentâneo é normal quando se modifica um cenário ou quando responsabilidades são assumidas. Afinal, ninguém evolui no medo.

O ponto é que, de forma análoga, e guardadas as proporções, nós, humanos, somos heróis. Não como o Superman; não fomos privilegiados com visão de raio-x, superforça ou incrível velocidade, mas, assim como ele, somos indivíduos, únicos, indivisíveis: cada um com suas potencialidades e limitações, desejos e frustrações, vontades e decepções, objetivos e lutas. Ele, o herói extraterreno, simboliza o que há de melhor em nós: gravados nos genes humanos estão: nossa herança histórica, nossa memória e nosso conhecimento, acumulados nesta e em outras vidas; e variáveis como disciplina, bravura, determinação, caráter, proatividade (postura diante da vida), humildade, bondade, compaixão, perseverança, fé e amor. Tudo isso alinhado à nossa predisposição para o aprendizado, nossa curiosidade ancestral pelas coisas do mundo e nossa tenacidade no enfrentamento das adversidades. Estas são as forças compensatórias que tecem o equilíbrio no mundo, a energia que podemos e devemos trabalhar em nós e oferecermos uns aos outros. É essa a ideia que expressa o real fundamento da pergunta que os adultos fazem às crianças: - “O que você quer ser, quando crescer?”, pois raros são os que se esforçam para que a resposta seja: - "Uma boa pessoa".

Essas forças compensatórias, convém ressaltar, nos são caras. Qualquer pessoa que traga consigo o peso do equilíbrio e do bom senso é um alienígena. Se exilássemos o medo, a dúvida, a violência, a ignorância e o preconceito, tomaríamos para nós a responsabilidade real de dedicarmos ao nosso mundo e àqueles que nos estão próximos o cuidado que lhes é devido. Este é o nosso desafio, nossa missão primordial. Trata-se de assumirmos o nosso papel em um processo holístico de correição, de aperfeiçoamento, de transmutação e de progresso contínuos. É isso o que chamamos de evolução. Assimilando o conceito, compreenderemos então o fascínio que o Superman exerce sobre nós, esse estranho sobrenatural que, mesmo derivado de uma obra de ficção, mantém-se devido a características essencialmente humanas as quais regem tudo que ousamos tocar.

1 nome do Superman em seu planeta, Krypton.

2 lançado no espaço em uma cápsula por seu pai, Jor-El, momentos antes de Krypton explodir.

(Francisco Filardi)