domingo, 24 de maio de 2015

UMA VIAGEM PELAS PÁGINAS DE "MICAS E A INFINITA ESTRADA AZUL", DE EMES DE FÁTIMA


UM PASSEIO 
POR ESTRADAS COLORIDAS
(de Francisco Filardi)


Micas é um menino de apenas onze anos de idade. Como toda criança, gosta de brincar e de saber o porquê das coisas. Mas as semelhanças param por aí. Ele não é como a maioria dos meninos de sua idade. Micas percebe o mundo à sua volta com uma sensibilidade própria e até incomum para indivíduos de sua faixa etária. Irrequieto e imaginativo, adora contar histórias sobre mundos de estradas coloridas, repletos de aventuras, mistérios e perigos.


A mãe, Dona Deleide, é sua maior incentivadora. É ela quem prepara carinhosamente o lanchinho da turma que costuma reunir-se no quarto de Micas, para ouvir e maravilhar-se com as histórias de seu filho mais velho. Godofrina, os irmãos Frago e Clarêncio, bem como Juli, Leopolda e Luma – este, irmão mais novo de Micas -, são apresentados a um universo curioso, que se vai descortinando pouco a pouco. “[...] gosto que me conheçam aos poucos. Igual quando tomo sorvete., diz o anfitrião. E assim iniciam a jornada: aos poucos... Com os pés no caminho, os meninos encontram um enigmático par de gatos dançarinos, os quais ronronam seu destemor pela morte (afinal, gatos têm muitas vidas!); deparam com os intrigantes bichos-casa, enormes animais imóveis que mudam de tamanho (será?); conhecem iguarias exóticas, como os deliciosos feijões saltitantes, que, entre um engasgo e outro, fazem festinha no céu da boca; encontram também o não menos exótico povo cabeça-panela, cheios de receitas e comidas que são um verdadeiro desafio para quem não sabe cozinhar! E o que dizer do universo dos espelhos sem reflexo? Você já ficou diante de espelhos que não refletem seu rosto? Então, prepare-se! Vaidoso que só, e por precaução, Micas sempre traz consigo um espelho, mas só ele pode revelar o porquê. Os meninos conhecem também o falante planeta silencioso, um mundo onde tagarelice e silêncio travam um duelo interessante. O que você prefere: a tagarelice ou o silêncio? Falar, falar? Ou calar, calar? Eis a questão. Por fim, os lençóis torcedores de água, os lençóis-lençóis, os lençóis-camas-voadoras! Nossa! São tantos mundos de que nunca ouviram falar! Mas, antes mesmo de colocarem os pés nessas estradas coloridas e aventurarem-se por esses mundos de personagens fantásticas, é preciso um cuidado especial: o de improvisar cabanas com panos coloridos, no quarto de Micas, às escuras, e portar lanternas acesas. Tudo para acrescentar uma aura de suspense e encantamento a essas incríveis histórias. Até os pais dos meninos se interessam em ouvi-las e em participar da brincadeira!


Mas, não é só isso. Há uma estrada, uma estrada magnífica, por onde Micas gosta de viajar: a Infinita Estrada Azul, “a única que não tem fim”. Esse é o caminho que o leva ao seu universo de sonhos e encantos, de curiosas criaturas e experiências únicas. Lá, ele se sente confortável e seguro para explorar suas indagações, experimentar seus medos, ser quem realmente é. “Sou convidado a sair do mundo comum e escolho ser transportado para um mundo muito especial”, ele diz. Quem, afinal, não tem guardado em si um mundo especial?


Ao longo de “Micas e a Infinita Estrada Azul”, a autora, Emes de Fátima, dá pistas de que seu protagonista é bem mais que uma simples personagem: é seu avesso, seu amor pela família, sua visão de mundo, sua história de vida. Cabe aos leitores a perspicácia de um Sherlock Holmes ou o olhar aquilino de um Hercule Poirot para localizar as pistas e sentirem-se tocados pela alma da escritora. As influências vão de Lewis Carroll (“Alice no País das Maravilhas”) e L. Frank Baum (“O mágico de Oz”) a J.K. Rowling (a saga “Harry Potter”), mas Emes de Fátima se vale de aquarela própria para pincelar o universo de Micas com tonalidade tal que resulta em texto leve, capaz de agradar não somente ao público a que se destina, mas a leitores (adultos-crianças) de todas as idades.

Nesse livro, Emes de Fátima parte numa jornada de autoconhecimento, mas é Micas quem a toma pelas mãos e a conduz no passeio pela Infinita Estrada Azul. Afinal, a realidade é dura e ambos precisam de um lugar seguro e belo. Como sabemos, felicidade é algo muito pessoal: [...] se todos estão alegres, esse sentimento também me leva para a Infinita Estrada Azul, e coisas, no mínimo, 'estranhas', acontecem....


No que depender dos leitores, a única “coisa estranha” que poderá acontecer será Micas encontrá-los, sob as cabaninhas improvisadas no escurinho do seu quarto, com as lanternas acesas, à espera de novas e deliciosas histórias. Aliás, já estamos lá.

domingo, 3 de maio de 2015

HIPNOSE COLETIVA

HIPNOSE COLETIVA
(de Francisco Filardi)



Em "A fantástica fábrica de chocolate" (1964), o escritor galês Roald Dahl apresenta aos leitores a personagem Mike Teavee, um menino de nove anos de idade fascinado por televisão. Quando diante do aparelho, Teavee aparenta desconectar-se de tudo o que lhe está à volta, inclusive dos pais, espectadores passivos de seu “transe”. Na versão cinematográfica de 1971, dirigida por Mel Stuart, o menino assiste a filmes de faroeste em roupas de vaqueiro, numa alusão à força hipnótica do veículo. Já na versão assinada por Tim Burton, em 2005, o objeto de fascínio são os jogos violentos de videogames.

Esse estado de alienação de que Mike Teavee é vítima sempre esteve e estará presente em nosso cotidiano. Notadamente, a partir do século XX avanços em campos de conhecimento diversos vêm fazendo o possível para furtar do ser humano o que lhe resta de humanidade. Quem não se lembra das imagens icônicas de Charles Chaplin torcendo parafusos e deslizando por entre engrenagens, em “Tempos modernos” (1936)? Essa notável crítica ao taylorismo¹ retrata o trabalhador fabril como um ser repetitivo, mecanizado, desalmado: o homem, criador da máquina, visto como engrenagem, absorvido pela máquina, fundindo-se a ela. O incrível é que nada mudou nesses quase oitenta anos. A crítica de Chaplin permanece atual e vibrante. O moderno, a novidade, o consumo, a tecnologia, a robótica, tudo não passa de um “canto de sereias” orquestrado para arrastar um número cada vez maior de marujos para o fundo do mar. Ou, se preferirem, um número cada vez maior de trabalhadores desalmados para o interior da máquina.

Os chamados smartphones, por exemplo, telefones portáteis que agregam funções (sendo a de telefonar uma das menos interessantes), mantêm seus usuários em interação silenciosa, alheios ao ambiente, efeito este semelhante ao provocado pela TV sobre Mike Teavee. Basta um passeio pelas ruas, metrô, ônibus, em salas de espera de clínicas médicas e odontológicas, e até em cinemas e casas de espetáculos, para constatarmos a frequência e mesmo a inconveniência desses eletrônicos. O diferente, o incomum hoje é não usarmos os polegares. Mas a quem ou a quê estamos, de fato, conectados?

Quando às ruas, as pessoas abdicam temporariamente do mundo, enquanto se recolhem ao microcosmo individualizado de seus smartphones. É provável que esse teclar frenético e solitário as “proteja”, de algum modo, das ameaças de nosso mundo belicoso, mas tal isolamento, ilusório, impede-as de perceber o impacto que o mundo tem sobre elas, sobre todos nós. Somos corrompidos por imagens porque nosso olhar é incentivado desde a infância – por nossos pais, pela mídia, pela sociedade - a apreciar “estampas”. Aceitamos e absorvemos tão somente o simpático, o carismático, o bom, o belo, o perfeito, sem que alcancemos a ideia que rege esse conceito (corrupção). Perdemos a capacidade objetiva de analisar e de raciocinar, bem como a de coletar e de triar informações. Valorizamos o duvidoso, porque priorizamos a figurinha, não o selo. E é justo essa forma de maravilhamento que nos mantém em uma “bolha”, assim como o menino Mike Teavee. Por isso, não percebemos o perigo.

Nossa enganosa percepção da realidade nos torna “zumbis”, reféns de mentes vivaldinas que estudam e mantêm vigilância sobre nossos passos. Implantes de chips no corpo, identificação biométrica etc, são ideias trabalhadas paciente e sub-repticiamente há décadas, para colocar em xeque nossa liberdade e privacidade. A literatura e os filmes de ficção científica do hemisfério norte do planeta têm, de certo modo, preparado o terreno para uma pavorosa realidade que está por vir. Se há dúvida quanto a isso, basta lembrar que o “Big Brother” (da obra “1984”, escrita por George Orwell em 1948) era considerado ficção, à época de seu lançamento². Nós, os tais zumbis, seguimos a onda, não resistimos a ela, pois maravilhados pelo tal “canto de sereias” não percebemos que nossas embarcações estão próximas dos rochedos. Muitas até já colidiram. A pergunta é: quando acordaremos? Acordaremos?

Quem assistiu a pelo menos uma das versões cinematográficas de “A fantástica fábrica de chocolate”, ou mesmo leu a obra de Dahl, deve ter reagido tanto à hipnose do menino Mike Teavee quanto à inépcia de seus pais. Mas, se olharmos de forma distanciada a maneira como agimos e pensamos, entenderemos que o autor, assim como Orwell e Huxley, era um visionário que nos alertou para perigos reais e iminentes.

Não nos enganemos com esse cupom dourado: Teavee está bem mais próximo de nós do que imaginamos.

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¹ modelo de administração científica, desenvolvido no início do século XX, por Frederick Winslow Taylor (1856-1915).


² O livro “1984” foi publicado originalmente em 1949.