segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

NÃO MATARÁS



Na adolescência, li uma história em quadrinhos na qual um jornalista pergunta ao Superman por que ele não mata seus inimigos, já que estes sempre retornam para atormentá-lo. A resposta - "Porque fiz uma opção pela vida" - causou-me tremendo impacto. Até hoje, perco-me no complexo emaranhado de maravilhas e de abominações que se convencionou chamar "natureza humana", devido a essa frase. A pergunta que me assombra, desde então, tem sido: quando, de fato, fiz minha opção pela vida?



É no mínimo curioso que a resposta tenha vindo de um extraterrestre. Tão curioso quanto é o fato de nós, mortais, não darmos a mínima importância a essa condição do Superman. Sua bondade e virtudes parecem estar acima do fato de estarmos a par de sua origem. Sendo bom e dotado de poderes excepcionais, o estrangeiro é visto como herói e, portanto, "solução para os problemas da humanidade". Não há o menor estranhamento nisso. Ao contrário, é reconfortante. O olhar extraterreno sobre a raça humana é desinteressado e altruísta. Mas nós, humanos, não somos assim; nossos "poderes" se estendem ao raio de nossas decisões e ações, ambas sujeitas a fraquezas (leia-se "interesses"). E é justo esse contraste que fratura a nossa torpe e mesquinha percepção acerca de nossos semelhantes e do planeta em que vivemos.



Hipocrisia à parte, é interessante que Shuster e Siegel, criadores da personagem, tenham transferido para um extraterrestre a preocupação e o peso da responsabilidade (aparentemente maiores do que a nossa) de cuidar da Terra. Grosso modo, é algo que nos reduz porque fazer uma opção pela vida (seja nossa, seja do planeta) exige um esforço sobre-humano - o que só ele, sendo super, estaria apto a fazê-lo - o que, sabemos, não é verdade; no fundo, trata-se de um recado sutil para não esmorecermos no combate ao egoísmo, ao individualismo, à ganância e à sede de poder que impregnam de fuligem e sombras o nosso mundo.



Aonde desejo chegar com esse introito? Ao que parece, a opção do Superman tem respaldo no sexto Mandamento das Tábuas de Moisés. Na Lei não está escrito "Não matarás seu semelhante", "Não matarás um animal", "Não matarás um inseto". Lá está, tão somente: "Não matarás". Ponto. A ordem é intransitiva, não carece de complemento. Trata-se de máxima universal, incondicional. Pela letra da Lei, não deveríamos matar qualquer criatura, qualquer que seja. Não deveríamos sequer arrancar da terra uma flor. Não deveríamos interferir na criação divina e, menos ainda, abreviar uma vida. Ainda assim, fazemo-lo. Matamos porque nossa índole é transgressora: matamos para comer, matamos por invasão de território, por ódio, por vingança (subproduto do ódio), até por "prazer" e por dinheiro. Nossa natureza corrupta torna evidente a longa estrada que precisamos percorrer para nos tornarmos dignos de fazer uma opção pela vida. E é não matando que o Superman nos aponta a direção.



Em vários de seus livros, o teólogo Leonardo Boff destaca a importância da palavra "cuidado"; do cuidado que devemos ter nas nossas relações para com Deus, para com nossos semelhantes, para com nós mesmos, a natureza, os animais, o planeta. Porque a felicidade, em seu sentido pleno, depende de como estabelecemos e mantemos essas conexões. A resposta do Superman, inspirada em Francisco de Assis, assevera que é preservando a vida (a nossa e a das demais criaturas) que nos tornamos verdadeiramente gratos pela maior bênção com a qual fomos presenteados.



Vivemos e sobrevivemos neste mundo com os olhos voltados para a Eternidade; mas isso só nos será possível pela edificação do bem. Por que é a partir do bem que enxergamos o mundo com outros olhos. E somente pelo bem reconhecemos a natureza divina em nós. A "opção pela vida" se dá, de fato, quando persistimos, de modo consciente, na liberdade do outro. Porque a destruição do outro é nossa ruína; quando "matamos" o outro, ainda que de forma não literal, também "matamos" em nós algo de divino. E isso desagrada a Deus. E também ao Superman. 

(de Francisco Filardi)