quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

PEDIATRA JUNIA CAJAZEIRO RELATA SUA EXPERIÊNCIA NO "MÉDICOS SEM FRONTEIRAS"

 Junia Cajazeiro
Junia Cajazeiro (Pediatra)

- Posso te dar um presente?
 - Mas por que um presente?
 - Primeiro me diz: você aceita um presente?
 - Olha, não precisa...
- Mas eu quero te dar. Eu trabalho com aura, você sabe o que é aura?
- Sim, eu sei.
- Então, você tem a aura bonita. É por isso eu quero te dar um presente. Sabe, desde quando eu cheguei aqui, você foi a primeira pessoa que me olhou nos olhos e tratou bem meus filhos. Eu não queria estar morando na rua. Eu não queria estar aqui. Eu queria estar na minha casa, mas eu não posso... (Lágrimas nos olhos. De nós duas).
- Eu vi que você gosta deste olho (apontando para meu pingente de olho grego). Ele dá proteção. Então eu vou te dar esta pulseira. Eu que fiz de macramê.

Essa é uma das muitas histórias que vivi com MSF: pacientes e suas famílias, passando por dificuldades que eu espero jamais sentir na pele. A dimensão do que é sair da sua casa, do seu país, em busca de comida, medicamentos, um mínimo de qualidade de vida. Fugir nunca foi uma opção para eles: era uma necessidade. Atendi vários casos como esse e é incrível perceber o quanto isso vai nos rasgando aos poucos, devagarinho. Uma dor quase imperceptível, mas presente o tempo todo: nas discussões de casos, na hora do almoço, nos nossos momentos livres. 

E somente agora, ao sair do projeto, me permiti sentir essa dor. Assim como no dia em que, ao perguntar a um menino de 3 anos de idade onde ele sentia dor, sua resposta foi, baixinho no ouvido da mãe para que eu não ouvisse, “a barriga, mãe, tenho fome”. Fui saber que eles não comiam desde o dia anterior, pois não chegaram a tempo no local de distribuição de comida. Também não conseguiram alimentos (frutas das árvores nas ruas) naquela manhã, porque a mãe tinha medo de perder a consulta comigo.

São muitas histórias, muitos sentimentos misturados e a certeza de que temos muito a fazer.

 
Uma vez me perguntaram se nessa vida de trabalho humanitário, com tantas idas e vindas, a gente se acostuma com despedidas. A cada vez que me despeço, de casa, dos amigos de sempre, da família e depois dos amigos e pacientes que fiz no projeto, essa pergunta reaparece na minha cabeça. E a resposta sempre foi não. Não me acostumei a me despedir. É sempre um sentimento misto de alegria por retornar à minha casa ou de iniciar um novo projeto e o coração apertado, de deixar família, amigos, cachorro ou a equipe e os pacientes. 

Sempre pensamos que podíamos ter feito mais. Dá um certo incômodo ao pensar que aquelas pessoas que se fizeram tão especiais e presentes na sua vida serão boas lembranças, mas talvez nossos caminhos não se cruzem mais. Dessa vez não podia ser diferente: me despedi há pouco do projeto e da cidade de Boa Vista.

Quase que como num ritual, fui me despedir daqueles pacientes que de certa forma me marcaram. Estava atendendo no centro de saúde local e também fiz alguns atendimentos em abrigos para refugiados venezuelanos que temos na cidade. Boa Vista tem 11 abrigos oficiais e muitas ocupações espontâneas de venezuelanos que vieram em busca de melhores condições para sobreviver.

Em um desses atendimentos nos abrigos, fui a Pintolândia, que é o abrigo para a população migrante indígena na cidade. Lá, conheci Maria Isabel. Menina linda que estava com muitas lesões de pele infectadas. Se sentia envergonhada porque as lesões eram grandes e se espalhavam por todo o corpo, o que a incomodava. Tive de tratá-la com medicamentos mais fortes e nesse tratamento ficamos próximas, pois acompanhei de perto sua evolução. Então, decidi ir no abrigo para me despedir.

Cheguei lá e ela estava dormindo. A vi deitada em sua rede. O senhor que me acompanhava queria acordá-la. Falei que não precisava. Segui para ver outros pacientes e falar com algumas pessoas. Quando estava saindo do abrigo escuto um grito: "olá, dotôra!". Claro que reconheci sua voz. Olho para trás e lá estava ela, sorridente com um vestido novo. Me aproximei, ela me mostrou seu vestido e conversamos um pouco. Contei para a mãe dela e a ela que estava indo embora. A mãe dela me olhou e falou: "Isabel, agradece a dotôra!" Isabel veio e me deu um abraço e um beijo. Para mim nunca será fácil me despedir. Isabel ficará em minha memória, assim como muitos outros pacientes, dos quais me recordo e fico imaginando como devem estar.

Minhas crianças pelo mundo.

fonte: publicado no site "Médicos sem Fronteiras", em 14/11/2019