domingo, 3 de maio de 2015

HIPNOSE COLETIVA

HIPNOSE COLETIVA
(de Francisco Filardi)



Em "A fantástica fábrica de chocolate" (1964), o escritor galês Roald Dahl apresenta aos leitores a personagem Mike Teavee, um menino de nove anos de idade fascinado por televisão. Quando diante do aparelho, Teavee aparenta desconectar-se de tudo o que lhe está à volta, inclusive dos pais, espectadores passivos de seu “transe”. Na versão cinematográfica de 1971, dirigida por Mel Stuart, o menino assiste a filmes de faroeste em roupas de vaqueiro, numa alusão à força hipnótica do veículo. Já na versão assinada por Tim Burton, em 2005, o objeto de fascínio são os jogos violentos de videogames.

Esse estado de alienação de que Mike Teavee é vítima sempre esteve e estará presente em nosso cotidiano. Notadamente, a partir do século XX avanços em campos de conhecimento diversos vêm fazendo o possível para furtar do ser humano o que lhe resta de humanidade. Quem não se lembra das imagens icônicas de Charles Chaplin torcendo parafusos e deslizando por entre engrenagens, em “Tempos modernos” (1936)? Essa notável crítica ao taylorismo¹ retrata o trabalhador fabril como um ser repetitivo, mecanizado, desalmado: o homem, criador da máquina, visto como engrenagem, absorvido pela máquina, fundindo-se a ela. O incrível é que nada mudou nesses quase oitenta anos. A crítica de Chaplin permanece atual e vibrante. O moderno, a novidade, o consumo, a tecnologia, a robótica, tudo não passa de um “canto de sereias” orquestrado para arrastar um número cada vez maior de marujos para o fundo do mar. Ou, se preferirem, um número cada vez maior de trabalhadores desalmados para o interior da máquina.

Os chamados smartphones, por exemplo, telefones portáteis que agregam funções (sendo a de telefonar uma das menos interessantes), mantêm seus usuários em interação silenciosa, alheios ao ambiente, efeito este semelhante ao provocado pela TV sobre Mike Teavee. Basta um passeio pelas ruas, metrô, ônibus, em salas de espera de clínicas médicas e odontológicas, e até em cinemas e casas de espetáculos, para constatarmos a frequência e mesmo a inconveniência desses eletrônicos. O diferente, o incomum hoje é não usarmos os polegares. Mas a quem ou a quê estamos, de fato, conectados?

Quando às ruas, as pessoas abdicam temporariamente do mundo, enquanto se recolhem ao microcosmo individualizado de seus smartphones. É provável que esse teclar frenético e solitário as “proteja”, de algum modo, das ameaças de nosso mundo belicoso, mas tal isolamento, ilusório, impede-as de perceber o impacto que o mundo tem sobre elas, sobre todos nós. Somos corrompidos por imagens porque nosso olhar é incentivado desde a infância – por nossos pais, pela mídia, pela sociedade - a apreciar “estampas”. Aceitamos e absorvemos tão somente o simpático, o carismático, o bom, o belo, o perfeito, sem que alcancemos a ideia que rege esse conceito (corrupção). Perdemos a capacidade objetiva de analisar e de raciocinar, bem como a de coletar e de triar informações. Valorizamos o duvidoso, porque priorizamos a figurinha, não o selo. E é justo essa forma de maravilhamento que nos mantém em uma “bolha”, assim como o menino Mike Teavee. Por isso, não percebemos o perigo.

Nossa enganosa percepção da realidade nos torna “zumbis”, reféns de mentes vivaldinas que estudam e mantêm vigilância sobre nossos passos. Implantes de chips no corpo, identificação biométrica etc, são ideias trabalhadas paciente e sub-repticiamente há décadas, para colocar em xeque nossa liberdade e privacidade. A literatura e os filmes de ficção científica do hemisfério norte do planeta têm, de certo modo, preparado o terreno para uma pavorosa realidade que está por vir. Se há dúvida quanto a isso, basta lembrar que o “Big Brother” (da obra “1984”, escrita por George Orwell em 1948) era considerado ficção, à época de seu lançamento². Nós, os tais zumbis, seguimos a onda, não resistimos a ela, pois maravilhados pelo tal “canto de sereias” não percebemos que nossas embarcações estão próximas dos rochedos. Muitas até já colidiram. A pergunta é: quando acordaremos? Acordaremos?

Quem assistiu a pelo menos uma das versões cinematográficas de “A fantástica fábrica de chocolate”, ou mesmo leu a obra de Dahl, deve ter reagido tanto à hipnose do menino Mike Teavee quanto à inépcia de seus pais. Mas, se olharmos de forma distanciada a maneira como agimos e pensamos, entenderemos que o autor, assim como Orwell e Huxley, era um visionário que nos alertou para perigos reais e iminentes.

Não nos enganemos com esse cupom dourado: Teavee está bem mais próximo de nós do que imaginamos.

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¹ modelo de administração científica, desenvolvido no início do século XX, por Frederick Winslow Taylor (1856-1915).


² O livro “1984” foi publicado originalmente em 1949.

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