Madame Filardi e Madame Jeripimboca, a Pimbinha, conhecem-se há muito, desde quando se iniciaram nos caminhos do ocultismo. Pimbinha, ao contrário da colega vidente, é taróloga e colecionadora de casos tão incomuns quanto o que narramos a seguir.
Certo dia, Mariana, a filha mais
velha de Pimbinha, comentou que a avó de uma amiga andava
deprimida, desesperançada, e desejava recorrer às cartas, o que
deixou a taróloga em cócegas.
O que se sabia sobre a idosa Tatá,
a consulente em questão, era que ela se dizia católica apostólica
romana, embora tal não convencesse os seus pares, pois há muito
abandonara as missas. Na boca pequena, corria que a ex-religiosa
Tatá batera ponto em terreiros de umbanda e demonstrava certa
inclinação para as coisas místicas. Daí o interesse pelo
trabalho de Pimbinha.
Numa quinta-feira, à tarde, a
taróloga recebeu Tatá em sua residência. Estendeu sobre a mesa
uma toalha branca, procedeu os ritos iniciais etc. Mas façamos aqui
uma observação: a leitura das cartas dessa arte secular divinatória
que é o Tarô não deve ser tomada ao pé da letra. A
interpretação não depende do significado desta ou daquela carta,
tomado individualmente, ou mesmo da ordem em que as cartas são
reveladas, e sim das relações que se formam entre estas, no todo.
Este resumo explicativo se faz necessário porque Tatá, para quem o
Tarô era uma experiência inédita, chegou desavisada à consulta
(para variar).
Pimbinha embaralhou o deck e
solicitou a Tatá que o cortasse
em
três partes, reagrupando-o
em seguida. Enquanto isso, Madame Filardi, sentada ao
sofá, com as pernas esticadas, fingia ler uma revista.
Interessada, acompanhava já os preparativos com espiadelas de rabo
de olho, enquanto saboreava um chá de camomila. As cartas foram
misturadas uma segunda vez, Tatá procedeu outro corte e Pimbinha
reagrupou novamente o deck. Em seguida, a taróloga puxou a primeira
carta, deitando-a no centro da mesa, com a face voltada para cima.
- Esta - disse, enquanto apontava com
o dedo indicador - é a sua carta, Tatá, seu momento atual.
A carta em questão era o Arcano
Maior de número treze: A morte. Tatá deu um pulo para trás,
na cadeira, e, ao tempo em que colocava a mão direita sobre o peito,
gritou:
- Ai, meu Deus! Eu vou morrer! Eu
vou morreeeeeeeer!!!
Que ninguém ouse dizer que o
desespero de Tatá era injustificado, afinal contabilizava 83 anos de
idade, faixa etária em que a morte é um fantasma para lá de
teimoso. Madame Filardi repousou a xícara de chá sobre a mesa de
centro e levantou-se do sofá. Embora risse consigo, tratou de
acudir a visitante:
- Tenha calma, Tatá. A morte, no
Tarô, significa transformação, mudança, oportunidade, renovação:
o fim de algo para o começo de outro.
Mas Tatá não se deixou convencer
de primeira:
- O que vai mudar ou começar, para
mim, a essa altura da vida, Madames?
- O futuro é um mistério, Tatá! -
respondeu Pimbinha. - Sente-se, por favor. Vamos continuar a
leitura.
Embora apavorada (essa era a
palavra) com a carta e a resposta para lá de clichê de Pimbinha,
Tatá concordou em que a sessão prosseguisse. Uma vez terminada a
consulta, já mais ou menos refeita, Tatá agradeceu, prometendo
retornar dali a uma semana (o que era incomum, já que as consultas
de Pimbinha se limitavam a uma por mês, para cada cliente). Mas a
taróloga compreendeu a urgência da consulente e não objetou.
Trocaram acenos e sorrisos amáveis (amarelos) e então,
despediram-se. Assim que a porta fechou-se por trás de Tatá,
Pimbinha e Madame Filardi conversaram.
E passaram o resto da semana sem notícia de Tatá.
Na semana seguinte, estavam Pimbinha
e Madame Filardi reunidas para o sagrado chá das quintas-feiras
quando Mariana, a filha da taróloga, chegou da rua mais branca que
vela de igreja.
- Mãe... - disse a jovem.
- O que foi, minha filha? Está
pálida, parece que viu fantasma! Desembuche!
- Lembra da dona Tatá, que esteve
aqui na semana passada?
- Claro! Ela quase infartou, quando
deitei a primeira carta!
- Pois é. Ela morreu...
Pimbinha não reagiu. Ficou ali,
indefesa e petrificada, a olhar para a filha como se buscasse no além
uma explicação divina para o que acabara de ouvir. Por outro lado,
Madame Filardi, que a essa altura se fartava com uma boa golada de
chá, engasgou-se numa crise de tosse tal que a fez cuspir longe a
bebida. Mas a coisa não parou por aí. Controlada a tosse, Madame
Filardi teve ainda outra crise: de risos! Ou melhor, risos que se
desdobravam em sonoras gargalhadas, o que deixou Pimbinha para lá de
irritada:
- Não ria, Madame! Isso é grave,
gravíssimo! Não vê que minha reputação está em risco? Se Tatá
contou a alguém sobre a sessão da última semana, estarei frita! -
repreendeu a taróloga.
Mas de nada adiantou a reprimenda:
quanto mais irritada se mostrava Pimbinha, mais gargalhava a outra
Madame. Até Mariana já não disfarçava o riso, face o ridículo
da situação. E isso, claro, também irritou Pimbinha.
- Até você, Mariana!
- Desculpe-me, mãe, mas... o que
posso fazer?!
- Não ria!!! - protestou a taróloga, desesperada.
- Não ria!!! - protestou a taróloga, desesperada.
- Cá entre nós, Pimbinha, -
interveio Madame Filardi, entre uma e outra gargalhada - lá nos
recônditos de sua alma, você nunca sentiu uma vontadezinha de
despachar um cliente, hã?
- Mas que absurdo! - contestou a
taróloga.
- Pois confesso-lhe que a vontade de
jogar minha bola de cristal em certas cabeças nunca me faltou! -
retrucou a vidente. Você há de convir, Pimbinha: sua leitura das
cartas nunca foi tão precisa!
É óbvio que a coisa não ficou boa
entre as Madames, mais por conta de Pimbinha que se recusou a falar
com a amiga por semanas. Até Mariana acabou vítima do mau humor da
mãe (que detestava chacota). Mas a coisa não durou. Mariana fez a
mãe perceber que o trágico fim de Tatá não passou de uma infeliz
coincidência. E é claro que Madame Filardi, gente boa (só) com os
amigos, não levou a sério a rabugice da amiga. Voltaram a papear
às quintas, à tarde, como de costume, em encontros regados a um bom
chá de camomila. E a biscoitinhos chineses (para dar sorte).
(finalizado a 29.05.2017)
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