Da mesma forma que na versão original de 1988, o remake da novela Vale Tudo, da Rede Globo de Televisão, parou o Brasil com o mistério envolvendo o assassinato da milionária Odete Almeida Roitman (Debora Bloch).
O desfecho da trama, exibido na sexta-feira 17/10/2025, porém, decepcionou boa parte da audiência. Apesar de a autora Manuela Dias ter anunciado de forma antecipada que o(a) criminoso(a) estaria dentre cinco personagens, os roteiros dos últimos capítulos da atração surpreenderam pelo atropelo da lógica.
Nos permitiremos aqui uma licença poética (se é que assim podemos chamar): desprezaremos os absurdos ocorridos após Odete Roitman ter sido atingida e consideraremos que a vilã foi, de fato, assassinada, a exemplo do ocorrido na versão original.
A personagem escolhida por Manuela para puxar o gatilho e alvejar Odete Roitman foi Marco Aurélio - seu odiado antagonista na Companhia Aérea TCA. Para entendermos os fatos, segundo a lógica, precisaremos de respeitar acima de tudo a ordem em que as personagens adentraram a suíte 604 do Copacabana Palace, onde Odete se encontrava hospedada. Segundo as imagens das câmeras de segurança do Hotel, analisadas pela Polícia, temos o seguinte:
1) Maria de Fátima Acioli (Bella Campos)
2) Celina Junqueira (Malu Galli)
3) Marco Aurélio Catanhede (Alexandre Nero)
4) Heleninha Roitman (Paolla Oliveira)
5) César Ribeiro (Cauã Reymond)
De posse desse importante dado inicial, vamos ao apresentado a partir do capítulo 163 (de 06/10/2025):
Maria de Fátima
Após discutir com Odete, deixa o Copacabana Palace transtornada e livra-se da arma, que adquirira de forma clandestina, atirando-a ao mar. Num primeiro momento, seria possível admitir que tivesse disparado contra Odete, mas vale lembrar que no bar do Hotel ela já se mostrava hesitante.
Ainda assim, ela ameaçou sacar a arma contra Odete, mas não a disparou por ter-lhe faltado coragem. A personagem demonstrou tremenda falha de caráter, fez o diabo ao longo da trama, mas uma coisa é atirar em garrafas; outra, bem diferente, é assassinar alguém. Seu depoimento ao Delegado Mauro (Cláudio Jaborandy) foi, de modo geral, consistente, exceto ao afirmar que nunca manuseara uma arma de fogo.
Matou Odete?
Se Maria de Fátima tivesse matado Odete, Celina, a segunda a adentrar a suíte, teria acionado a Recepção ou os seguranças do Hotel, ou ainda a Polícia. Então, Maria de Fátima não poderia ter atentado contra a vida de Odete.
Celina
Seu depoimento é o mais consistente e, da mesma forma que Maria de Fátima, deixou o Hotel transtornada, por não acreditar que as coisas chegariam a tal ponto, e também por não ter tido coragem de atirar na irmã. Indignada e ressentida, vomitou todo o peso de cuidar e proteger a família, na conversa com o Delegado: admitiu possuir uma arma (que fora de seu pai), admitiu saber atirar (ensinado por Odete, ainda na mocidade), admitiu que sacou a arma e a apontou para Odete. Ela só dá um passo em falso quando o Delegado lhe pergunta onde estaria a arma, ao que ela responde, de forma pouco convincente, que a deixara na suíte (a arma seria encontrada numa lixeira do Hotel, contendo as digitais de Celina e de Heleninha).
Matou Odete?
Se Celina tivesse de fato disparado contra Odete, o fato validaria o depoimento de Marco Aurélio, que declarou tê-la encontrado morta ao adentrar a suíte.
E, ainda, se Celina tivesse matado a irmã, Marco Aurélio teria acionado um funcionário do Hotel ou chamado a Polícia, o que não ocorreu.
Em casa, pouco antes de a família se dirigir ao cemitério (para o sepultamento de Odete), Celina diz a Heleninha que ela tem que ir ao sepultamento.
No dia seguinte a um desses depoimentos, Celina e Heleninha conversam durante o café e a tia pergunta à sobrinha quem ela acha que matou Odete. Esta responde, de forma displicente:
- Acho que o César, talvez. A verdade é que minha mãe merecia morrer. Essa é que é a verdade.
Celina e Heleninha, a propósito, comparecem várias vezes à Delegacia para reivindicar a autoria do crime, mas isso não passa de artifício manjado para distrair o público e afastá-lo do(a) verdadeiro(a) assassino(a).
Marco Aurélio
Desde o início de sua conversa com o Delegado, adota postura defensiva, deixando claro que “sofrera um atentado”, como se estivesse a justificar por que disparara contra Odete. Das cinco personagens que visitam Odete na suíte 604, é o único que demonstra tranquilidade (ou frieza) ao deixar o recinto.
Cenas antes, ainda no Hotel, onde se hospedara com sua esposa Leila, sob pretexto de uma nova “lua de mel”, Marco Aurélio instala um silenciador numa pistola. O detalhe é que a arma que dispara contra Odete não traz esse dispositivo. Então, temos aí a seguinte questão: por que Marco Aurélio desistira do silenciador?
No restaurante do Hotel, Marco Aurélio avista Fátima deixando o bar e comenta com Leila, ao avistar policiais em conversa com funcionários:
- Acho que descobriram a Odete.
Mas esse comentário se dá porque ele matara Odete ou por acreditar que Maria de Fátima o fizera? Mais uma: se Marco Aurélio estava desconfiado de que Fátima atirara em Odete, por que não abortou a missão? Foi por essa razão que ele sustentou na conversa com o Delegado que encontrara Odete já morta, ao chegar à suíte?
Questionado na oitiva sobre a reserva da acomodação no Copacabana Palace, no mesmo dia em que Odete fora assassinada, Marco Aurélio mente para proteger a esposa. Admite que subiu à suíte (para entregar um relatório da TCA) e que encontrou Odete morta com um tiro no peito. E aqui ele se trai, porque o disparo atingira o abdômen de sua desafeta. Um detalhe que teria despertado a atenção de qualquer policial, ainda que com mínima experiência.
Matou Odete?
Tudo o que Marco Aurélio desejava era articular uma manobra para afastar de si a autoria do crime. Se ele tivesse matado Odete, voltando à sequência do hall, Heleninha teria encontrado sua mãe já morta, o que não ocorreu. Então, o frágil depoimento de Marco Aurélio cai por terra.
Heleninha
É a única personagem, das cinco suspeitas, que não abre uma bolsa ou um saco de papelão (como fizera César) para mostrar arma de fogo ao espectador (em cenas pueris, até).
Suas digitais, assim como as de Celina, são encontradas na arma encontrada na lixeira do Hotel, mas isso nada quer dizer. Celina admitira ao Delegado que a arma pertencera a seu pai, e, quanto a Heleninha, é provável que tenha manuseado a arma durante um surto.
Matou Odete?
O que depõe contra Heleninha é sua mente perturbada. Ficara dois dias desaparecida, sem contato com a família – e literalmente à beira de um precipício, antes de surgir cambaleante à porta do Copacabana Palace. Encontrava-se em estado de embriaguez e todos sabemos que o álcool potencializa a coragem.
Se Heleninha tivesse dito ao Delegado que encontrara a mãe já morta, teria validado o depoimento de Marco Aurélio e a suspeita evidente recairia sobre Celina.
César
Só ele, além de Odete, tinha a chave da suíte 604. De forma curiosa, a porta estava destrancada e todas as personagens suspeitas adentraram o recinto sem obstáculo e sem interferência de Odete.
Durante a oitiva na delegacia, César se comporta como um coelho assustado e, de cara, dá bandeira ao perguntar ao Delegado se ele próprio fora o último a entrar na suíte de Odete. Tenta encobrir Olavo, mas o discurso não cola porque o policial já tinha informação de que César fora visto em companhia de terceiro. Não sabemos por que razão o Delegado não o questionou sobre o apartamento do edifício Chopin, vizinho ao Copacabana Palace, alugado pela dupla para que Olavo disparasse contra Odete quando ela estivesse na piscina do Copa. César diz ao Delegado que encontrara Odete morta e que não chamara a Polícia por estar apavorado, momento registrado pelas câmeras internas do Hotel.
Matou Odete?
Analisando a forma como as personagens entraram e saíram da suíte 604, de fato César encontrou Odete morta e foi o único a fazê-lo, o que crava o último prego no depoimento de Marco Aurélio.
A Polícia
Aqui temos um detalhe crucial: o Delegado inverte a ordem dos depoimentos, em relação à sequência do hall: Heleninha, que fora a quarta a adentrar a suíte de Odete, teve seu depoimento colhido antes do de Marco Aurélio e logo em seguida ao de sua tia, Celina.
O depoimento de Heleninha é sofrido. Fala sobre a conflituosa relação com a mãe, o assassinato de Ana Clara (Samantha Jones), o reencontro com o irmão Leonardo (Guilherme Magon), de cujo convívio fora privada por 13 anos, a raiva da mãe por ter engendrado tudo em segredo, e por ela, Heleninha, ter atentado contra a própria vida, algumas vezes.
O Delegado pergunta se ela se dirigiu ao Copacabana Palace armada. Ela alega que nunca tocou e que tem horror a qualquer tipo de arma (talvez não, em estado consciente). Mas aí ela derrapa:
HR - Eu falei tudo o que eu tinha para falar para ela.
DEL - E como a sua mãe reagiu?
HR - Ela me bateu. Aí, tem hora que a gente não pode fazer nada. É só aceitar o que está para acontecer… (ela hesita) e pronto.
DEL - Então, vocês conversaram, se desentenderam e a Sra. foi embora?
HR - Eu não matei a minha mãe, Delegado. Talvez eu tivesse vontade de ter feito isso (em estado não consciente?), mas eu não matei Odete Roitman.
A Polícia segue o caminho óbvio, colocando Marco Aurélio e César na alça de mira, por serem os principais privilegiados (financeiramente) com a morte de Odete, mas se o Delegado Mauro tivesse prestado atenção à sequência do hall do Hotel, faria outra leitura: Heleninha estava alcoolizada e todos sabemos que o álcool potencializa a coragem. Somado a isso a sua trágica história de vida, convenhamos: é um combustível e tanto.
Outro detalhe: antes de Odete tombar, vemos um segundo furo na parede da suíte (o primeiro disparo), provocado por arma de fogo. Odete jamais poderia ter dito a Marco Aurélio que aquele disparo fora causado por Heleninha, porque esta ainda não havia estado com a mãe. Percebem? Para compreender isto temos que retornar à sequência de acesso à suíte de Odete. Um erro crasso do roteiro.
Quatro atos falhos (dentre outros tantos)
1) na suíte, Celina discute com Odete e aponta a arma para a irmã; esta lhe dá um tapa e a arma cai ao chão (onde a encontra Heleninha) ou é colocada sobre a mesa (onde é tomada por Marco Aurélio). É muita sopa para o azar...
2) dois tiros foram disparados na suíte 604 e nenhum funcionário ou hóspede do Hotel os ouviu?;
3) nenhum dos atores envolvidos acionou a Recepção ou os seguranças do Hotel, ou acionou a Polícia;
4) a turma da balística não se deu o trabalho de comparar os tiros e verificar se ambos os projéteis partiram da mesma arma.
Quem, de fato, matou Odete?
Concluímos que quem atentou contra a vida de Odete, na verdade, foi sua filha Heleninha. A autora Manuela Dias não foi por esse caminho, muito provável por conta da possível repercussão negativa da audiência: “imagine, uma filha matar a própria mãe!”. Como se isso não acontecesse na vida real...
(por Francisco Filardi)
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