sábado, 23 de junho de 2018

O ILUMINADO: DETONANDO KUBRICK





Dentre os filmes dirigidos por Stanley Kubrick, merecem destaque os títulos 2001: uma odisséia no espaço (1968), do instigante computador HAL-9000, e Dr. Fantástico (1964), este com direito a tripla atuação do ator Peter Sellers e a famosa cena da cavalgadura no míssil, a qual foi satirizada, inclusive, pela animação Os Simpsons (episódio Homer the vigilante, de 1994).



O mesmo não se pode dizer de O iluminado (The shining, 1980), inspirado no best seller cult de Stephen King. O filme dirigido por Kubrick é uma colcha de retalhos que descaracteriza o trabalho do escritor, omite passagens cruciais do texto original (as árvores em forma de animais e as idas de Jack ao porão do hotel, onde descobre nos livros de registros pistas sobre o passado do Overlook, por exemplo) e retira do hotel a condição de personagem central da trama. Os espectadores de Kubrick (que não leram o texto de King) ficam perdidos com as lacunas no roteiro as quais incluem esclarecimentos acerca do significado da palavra REDRUM e da influência maligna do hotel sobre seus hóspedes.



Kubrick altera substancialmente o texto original, levando o filme a um desfecho patético que o afasta totalmente do clima tenso e violento do último terço do livro de King. Para completar o desastre, concorrem as atuações catastróficas de Shelley Duvall (como Wendy Torrance) e do inexpressivo ator mirim Danny Lloyd (na pele de Danny, o iluminado do título) cujo carisma ou graça é ZERO.



Já o Dick Halloran retratado por Kubrick (interpretado pelo simpático Scatman Scrothers) é uma personagem que tem sua importância reduzida e, portanto, distanciada da função para a qual foi criada. Em relação a este, há uma passagem do livro (ignorada por Kubrick) em que o cozinheiro do Overlook, pouco antes de deixar o hotel, face a aproximação do inverno, pede ao menino uma demonstração de seu poder mental. Halloran fica perturbado.



Além disso, a importância do Hotel Overlook (como dissemos, personagem central da trama) foi relegada a um segundo plano por Kubrick. Na versão do cineasta, tem-se a impressão de que o hotel nada tem a ver com as alterações no comportamento de Jack. Parece que este enlouqueceu face ao isolamento da civilização (a trama se passa no inverno, Jack e a família estão sós no Overlook até o fim da estação). Até Tony, o amigo imaginário que apavora Danny em várias passagens do livro, raramente é citado no filme. O título de Kubrick também não esclarece o porquê de Danny avistar, em imagens superpostas, duas irmãs gêmeas em vestido azul, ora de pé, ao fundo do corredor, ora cobertas de sangue, aparentemente no mesmo local. As meninas são filhas do homem com quem Jack conversa no banheiro do salão de baile. Esse homem é o Sr. Grady, antigo zelador do Overlook, que matou as filhas a machadadas (sob influência do hotel). Como percebemos, a omissão de detalhes faz os espectadores de Kubrick tatearem na penumbra, comprometendo o resultado.



Mas, para quem leu o texto de King, a cereja do bolo são as cenas em que é impossível evitar gargalhadas, a exemplo das que citamos abaixo.



Cena 1:




Danny, sob influência de seu amigo imaginário Tony, entra no quarto da mãe, que está a dormir. Em aparente transe, e de posse de um facão, o menino repete seguidamente o palíndromo REDRUM (MURDER, assassino) num tom de voz ridículo, irritante e risível, em cena que não existe no livro.



Cena 2:



Wendy, às lágrimas (ou caretas...), sacode freneticamente um taco de beisebol, enquanto golpeia o ar de forma patética, para fugir de Jack (ele não deseja machucá-la, só estrangulá-la!).  É, Wendy, pare com esse bastão!!!




Cena 3: 




Wendy Torrance foge do marido perturbado, acompanhada pelo filho, e sobe as escadas em direção aos seus aposentos. Lá chegando, ambos se trancam no minúsculo banheiro. Ela faz o filho passar por uma janela estreita que dá para uma espécie de rampa de gelo que faz o menino alcançar a rua. No entanto, ela quase fica entalada, não consegue escapar. Jack, por sua vez, atinge a porta com um machado, enquanto ela, trêmula e desesperada, encolhe-se num canto próximo da porta, com o facão nas mãos. A câmera pega Wendy de frente, ao tempo em que capta as machadadas de Jack. A cada machadada, um grito histérico de Wendy, o que nos faz lembrar do curta Thriller, de Michael Jackson. Não há como não rir!



Cena 4: 




Ao desistir da perseguição ao filho iluminado, Jack desaba no gelo, com o machado em uma das mãos e os olhos revirados para cima. No close, não há como não lembrar do maluquete Jim Carrey!



Stephen King veio a público condenar o trabalho de Kubrick (King odeia o filme). Mas a coisa não ficou nisso. O filme desagradou também aos membros da Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood: no ano seguinte (1981, portanto), o diretor e sua atriz coadjuvante foram indicados à primeira edição do Troféu Framboesa de Ouro, premiação destinada à escolha dos piores do ano (uma sátira ao Oscar da Academia).



No entanto, mesmo com a ofensa à obra de King, devemos fazer justiça ao trabalho de Jack Nicholson, nosso maluquete preferido, imbatível nos papéis de lunático, de psicopata ou de vítima de TOC (transtorno obsessivo compulsivo).



No geral, a adaptação da obra de King, citando uma declaração do autor para defini-la, o livro é quente, o filme é frio; o livro termina com fogo, e o filme, com gelo1, coisa que só quem leu King e assistiu a Kubrick irá compreender.





1 em entrevista concedida a Andy Greene, em 12/01/2015, publicada na revista Rolling Stone.

(por Francisco Filardi)

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