CRASH!¹
-
aos
meus
filhos, aos
que são filhos
e aos filhos que se tornaram pais -
(Francisco
Filardi)
Criar filhos é tarefa hercúlea. Impõe a nós, pais, o exercício habitual da paciência e da renúncia. Tem sido assim, desde que Deus criou o mundo. E assim será, até ao fim dos tempos. Mas, nestes primeiros anos do século XXI, apesar dos avanços da humanidade nos campos da medicina, da ciência, da tecnologia, da robótica e das comunicações, não nos é difícil perceber que o entendimento acerca do trato de nossos filhos carece de melhores ajustes.
Todos erramos na criação de nossos
filhos. Em maior ou menor grau. Se há quem discorde, que pergunte a
eles. Ou melhor, não pergunte. Nenhum filho será 100% honesto
sobre isso. O constrangimento, a timidez ou o receio de entristecer
os pais não os deixa à vontade para falar sobre o que lhes causa
dor ou infelicidade. E o desconforto não é só deles: nós, pais,
não estamos preparados para ouvir a verdade (ou parte dela). A
ruptura,
o isolamento e a ausência de diálogo que decorrem daí são graves
ruídos nas relações familiais (desde sempre). Quando pais e filhos
não expõem suas mágoas, quando não depositam sobre a mesa seus
temores ou o que os faz sofrer,
abre-se uma lacuna que vem a empobrecer a relação, via de regra
pautada por exigências excessivas ou pela intolerância dos pais.
Não é fácil lidarmos com as
pressões provenientes do próprio lar. Não raro, pais descarregam
sobre os filhos o peso do seu despreparo,
de suas expectativas,
de seus receios,
de suas frustrações,
de suas crenças,
de seus planos,
de suas paixões,
de suas carências,
sob o argumento de ser esse "o melhor" a ser feito por suas
crias. Entendem tal comportamento como “normal”, quando, na
verdade, essa percepção míope faz o terreno
fértil do amor ceder espaço para a prática do “bullying”²
no
ambiente familial
(efeito
de pais controladores,
invasivos,
ciumentos,
possessivos,
intimidadores, castradores
e até cruéis).
A situação se agrava quando os pais são contrariados. E
contrariedade, quase certo, leva à arbitrariedade, o que é perigoso
em qualquer cenário.
Isso nos leva ao seguinte: é senso comum os pais entenderem que seus
filhos necessitam de limites, mas... qual será o limite dos pais?
Até aonde devemos ir, para não trespassarmos a fronteira do
respeito pela individualidade e privacidade de nossos filhos?
Observem que o emprego do verbo
descarregar
parece excessivo, mas deriva de um lento e desgastante processo cujos
danos são imprevisíveis, devastadores e irreversíveis até (tanto
para os envolvidos quanto para a relação em si). Há quem atribua
isso ao chamado “choque de gerações”. Contudo, tal expressão
não existe. O que há é uma não
predisposição para ouvir,
um hiato abismal entre o que é imposto e o que pode ser negociado.
Nós, pais, por ignorância (ou tremenda falta de sensibilidade),
somos exaustivos, atropelamos a ética e massacramos nossos filhos,
deixando seu estado psicológico em frangalhos. Isso não pode ser
negligenciado, porque não somos senhores
absolutos de uma verdade absoluta.
Os danos, ainda que não aparentes, estarão lá e seus efeitos se
farão visíveis adiante.
“Fazer o melhor” (em tese, o que
os pais desejam fazer pelos filhos) não é o aspecto crítico do
processo: é seu modus
operandi, as decisões
unilaterais que vão de encontro aos anseios, às expectativas, aos
desejos dos filhos. Porque o futuro que planejamos para eles é
diferente daquele que planejam para si. Se desconhecemos o que lhes
vai na alma (por desinteresse, arrogância ou soberba), de algum modo
sabemos que há um
caminho que desejam e precisam
tatear por si mesmos. Portanto, não temos o direito de condená-los
à infelicidade face ao nosso egoísmo, vaidade, estupidez ou
intransigência. Se há quem pense ser isso bobagem, que procure
saber de um especialista o que significam os termos ansiedade
e depressão.
Muito provável,
nossos filhos os conhecem bem.
A pergunta crucial é: como
podemos lançar-nos o desafio de criar filhos psicologicamente
saudáveis, quando há em nós, adultos, uma penca de rachaduras na
alma?
Quando adolescentes, tendemos a pensar
que nossos pais estão ultrapassados, desconectados
do mundo moderno.
No entanto, ao atingirmos a idade adulta, repetimos
atos, discursos e decisões
de nossos pais. Foi
Sheakspeare quem
disse que há mais de nossos pais em nós do que supomos. Talvez.
Mas, não é pelo fato de
terem sido autoritários, rudes, severos, inflexíveis ou
distanciados, que devemos persistir no modelo.
Renato Russo, na canção “Pais e filhos”, sentencia: “você
me diz que seus pais não entendem/mas você não entende seus
pais/você culpa seus pais por tudo/isso é absurdo/são crianças
como você [...]”. Sendo
isso verdadeiro, o
que fizemos com a criança que
nasceu em nós? Por que as crianças tornam-se adultos frágeis,
atormentados
por
monstros que insistem em
persegui-los, dia e noite? Em
que altura do caminho rompemos
a conexão com o que nos parecia mágico e belo? Bauman³,
de forma brilhante, acrescenta: “Talvez
fosse melhor mudar os costumes do mundo e tornar nosso hábitat
hospitaleiro à dignidade humana, de modo que amadurecer não
exigisse o comprometimento da humanidade de uma criança” (p.
103, 104). Aprender,
entre outras definições,
consiste em identificar o que nos é válido e eliminar o que não
nos serve. Pelo que se vê, a
imposição
da
autoridade pelo uso da força tem se mostrado uma péssima escolha.
Afinal, o objetivo é trazermos nossos filhos para nós, não o
contrário.
Que
esteja claro: relações de amor diferem (e muito) de relações de
poder. O amor,
assim como o respeito,
é uma
conquista
que
pressupõe liberdade (a de si, a do outro). Mas
não dizemos com isto que
nossos filhos devam
fazer o que lhes “der na telha”. Só a disciplina, a
responsabilidade, o
comprometimento,
o estudo, o trabalho, os levará longe. Nossa função é dar-lhes um
norte para seguirem. Essa compreensão amadurece conosco.
A
maior lição que nossos filhos (e netos) nos ensinam é a sermos
generosos.
Eis
o sentido do amor
incondicional:
sem amarras, sem excessos.
Então, cabe a nós desativar as armadilhas de nossas convicções e
lançarmos sobre eles um outro olhar: terno,
humano
(o que não é fácil). Se
nossos filhos souberem, desde sempre, que podem confiar em nós, seus
pais, estaremos contribuindo para o fortalecimento de seus espíritos
e o pleno exercício de suas potencialidades. Basta pavimentarmos a
estrada, com maturidade e sabedoria, para que eles enfrentem a vida
com destemor, serenidade, firmeza, vibração. E conquistem o mundo
(que
tanto merecem).
__________
¹
“Crash” é uma forma onomatopaica que indica impacto, ruptura,
estilhaçamento, efeito de trauma (físico ou psicológico),
colisão.
²
“Bullying” é um anglicismo
utilizado para descrever atos de violência
física ou psicológica
intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo ou grupo de
indivíduos, causando dor e angústia e sendo executados dentro de
uma relação desigual de poder (definição da Wikipédia).
Sugestões
de leitura:
GIBRAN,
Gibran Khalil. Tradução: Mansour Challita. Os filhos. In: O
profeta.
1. ed. Rio Grande do Sul: L&PM Pocket, 2001. 128 p.
³
BAUMAN,
Zygmunt. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Amor
líquido:
sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
190 p.
MELO,
Fábio de. Quem
me roubou de mim?.
2. ed. 8a.
reimpressão. São Paulo: Planeta, 2013. 216 p.
Adorei o texto sobre a relação pai e filho. Um relação complicada, mas que quando há equilíbrio pode ser muito saudável e prazerosa! Continue escrevendo!
ResponderExcluirMuito grato pela nota, Thiago! Agradeço a atenção e gentileza. Continue conosco, abração!
ExcluirTambém gostei...
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