sábado, 24 de fevereiro de 2024

THE GOOD WIFE - UMA SÉRIE QUE VEIO PARA FICAR

Criada e produzida por Robert e Michelle King1 para a rede CBS de televisão, a série The good wife – pelo direito de recomeçar2 (2009-2016) explora os bastidores de escritórios de advocacia, dos Tribunais de Justiça e da Política. Com elenco acima da média e roteiros ágeis, sua trama tem por foco a ascensão e a queda da advogada Alicia Florrick (Julianna Margulies), que retoma a carreira após hiato de 13 anos.

Ao longo de suas sete temporadas, The good wife escancara que a Ética é vista tanto pelo Direito como pela Política como mera conveniência administrativa, à mercê de um complexo enredamento de interesses individuais e/ou de grupos específicos.

A corrupção é apresentada em sua forma crua: enraizada nas relações humanas, no tecido social e também na família. A disputa por Poder - uma constante na série - faz os envolvidos oscilarem na corda bamba da moral, enquanto se arriscam por terrenos movediços e tremendamente hostis. Advogados, Promotores, Juízes, Assessores e Políticos são parte de um jogo e basta um movimento em falso para colocá-los sob os holofotes da imprensa e/ou na mira da Polícia ou do FBI.

O buraco fica cada vez mais fundo: parceiros de longa data se tornam concorrentes vorazes; inimigos declarados se tornam aliados da vez. E para cada novo cenário, um novo estratagema. Ou seja, é um sistema autofágico.

Há dois divisores de águas em The good wife: o primeiro, dá-se a partir da terceira temporada, quando o tempo de vídeo de personagens como a mãe de Peter Florrick (esposo de Alicia) - a enxerida Jackie (Mary Beth Peil) -, e seus filhos Zach (Graham Phillips) e Grace (Mackenzie Vega) passa a escassear, dando pistas de sua impopularidade; o segundo, ocorre com a morte forçada de Will Gardner (seu intérprete, o ator Josh Charles, deixou a trama, a pedido) na quinta temporada, o que faz a série a perder força, ainda que tenha rendido alguns bons episódios em suas duas últimas temporadas.

ATUAÇÕES DESTACADAS


Além dos roteiros elaborados, a excelência da série está em seu elenco afiado, no qual se destacam, entre outros, Alan Cumming (Eli Gold), Sarah Steele (Marissa Gold, filha de Eli), Michael J. Fox (como o cínico e trapaceiro advogado Louis Canning), Carrie Preston (a impagável Elsbeth Tascioni) e Dylan Baker (o dissimulado homicida e maníaco sexual Colin Sweeney).

Além desses, Cush Jumbo (Lucca Quinn) e Jeffrey Dean Morgan (Jason Crouse) se revelaram ótimas contratações para a sétima e última temporada.

O QUE NÃO FUNCIONA EM THE GOOD WIFE

 

Em toda série, há imperfeições, equívocos ou mesmo erros crassos, seja por excessos, seja pelos habituais clichês. The good wife, é claro, não escapa disso. Vejamos algumas situações que não fariam falta, caso deixadas de lado:

1) a apelativa cena de tribunal em que Louis Canning usa uma máscara de inalação (6a temp.) para despertar a simpatia do magistrado; a propósito, Canning não é o único a se valer desse tipo de artifício: sua colega de profissão Patti Nyholm (Martha Plimpton) ignora a noção de bom senso e vai ao gabinete de um juiz conduzindo um carrinho de bebê, com idêntico propósito. O magistrado não se dá conta da manobra, encanta-se com a criança e o momento mãe de Nyholm, numa clara insinuação de que juízes são manipuláveis (no contexto da série);

2) em O julgamento (The trial, 6a temp.), Jackie telefona para Alicia e solicita sua presença na escola de Grace, onde o diretor está de posse de um bilhete no qual a advogada ameaça de morte um professor. A imprudente Grace entregara o bilhete à professora, numa aula de Moral e Cívica (!), para esclarecer se tal teor estaria protegido pela liberdade de expressão. Na sala do diretor, Alicia alega que aquilo não passara de uma brincadeira (de mau gosto, diga-se), entre mãe e filha, que não deveria ter saído do círculo familial. Decerto, uma péssima ideia dos roteiristas do episódio (Robert e Michelle King).

3) o uso de e-mails profissionais para uso pessoal, contendo mensagens comprometedoras, atitude infantil dos advogados;

4) o recurso de usar um dublê de Will Gardner na 6a temporada, numa recordação de Alicia. Dá para ver que não se trata de seu intérprete original Josh Charles, e o resultado é ruim;

5) a hipocrisia de Grace Florrick, ao criticar a mãe sobre sua relação extraconjugal com Will Gardner (6a temp.). Segundo ela, o comportamento de Alicia é avesso aos princípios cristãos. Mas a própria Grace dá as suas escapulidas para paquerar seu colega de escola Connor, às escondidas (em Lá vem o juiz, 4a temp.), o que também não é exemplo de comportamento cristão. Além disso, a cristã de carteirinha se revela uma mercenária de quinta, ao reivindicar aumento de salário e a exigir direitos de funcionária à própria mãe. No episódio Shot (7a temp.), ela diz à Alicia que pretende seguir a carreira do Direito;

6) o desnecessário casamento entre Jackie Florrick (Mary Beth Peil) e o advogado Howard Lyman (Jerry Adler), na 7a temporada;

7) as frequentes interrupções de conversas, momentos íntimos e até relações sexuais: uma porta é aberta, um celular toca: clichê repetido à exaustão, ao longo da série.

Além disso, observamos os inexplicáveis sumiços do traficante Lemond Bishop (Mike Colter), do promotor Finn Polmar (Mattew Goode) e da investigadora Robyn Burdine (Jess Weixler), na 7a temporada. De outra forma, Código aberto (6a temp.) resgata três personagens quase esquecidas: o especialista em balística Kurt McVeigh (Gary Cole), o juiz Charles Abernathy (Denis O’Hare) e a advogada Nancy Crozier (Mamie Gummer, filha da atriz Meryl Streep).

EPISÓDIOS EM DESTAQUE

 

The Good Wife traz à luz da discussão algumas questões que envolvem o uso da tecnologia. Dada a atualidade do tema, merecem destaque os episódios:

Distração (Shiny objects, 6a temp.)


Diane Lockhart (Christine Baranski) se compromete com Alicia a enviar por e-mail os arquivos de um caso que irá ajudá-la num julgamento. Entretanto, ao acessar a respectiva pasta em seu computador, Diane visualiza mensagem informando que seus arquivos foram encriptados, havendo um botão para decodificá-los. Mesmo hesitante, Diane clica no botão e todos os computadores do escritório sofrem apagão imediato. Em seguida, uma segunda mensagem exige a transferência de 50 mil dólares para uma conta não identificada, no prazo de 72 horas, para que o escritório receba a chave de decriptação, caso contrário os arquivos serão deletados dos computadores de forma permanente. Trata-se de ataque cibernético por ransomware (malware que sequestra dados, bloqueia o acesso da vítima ao próprio sistema operacional e exige pagamento de resgate, não havendo aí, porém, garantia de que o invasor cumprirá com os termos da negociação), um alerta para que usuários de computadores não cliquem em ícones, gifs animados ou links suspeitos no corpo de uma mensagem de e-mail, programas de conversação ou redes sociais. A situação de Diane é agravada ainda pelo fato de o escritório não dispor de backup dos arquivos sequestrados.

Não tripulado (Unmanned, 6a. temp.)

O episódio trata da invasão de privacidade. Um cliente de Diane, terapeuta que atende em seu domicílio, alega que um drone sobrevoa sua casa todos os dias, em horários diversos. A parte reclamada se defende alegando que se trata de varreduras de segurança. Segundo o terapeuta, alguns de seus clientes desistiram de seguir com as consultas, por conta dessa invasão de privacidade. Incomodado, o reclamante acaba por atirar e derruba o drone, ao que a empresa reclamada move ação indenizatória por perdas e danos. Independente de quem tenha razão, o episódio mostra a empregabilidade nociva dos drones: podem portar armas de fogo (de pistolas a metralhadoras), de efeito devastador; são capazes de realizar imagens térmicas e podem até incorporar roteadores wi-fi que induzem computadores pessoais desprotegidos a usá-lo, com a finalidade de furto de dados pessoais (inclusive bancários). A causa envolve a Administração Federal da Aviação quanto à legislação vigente sobre a altura mínima admitida para o voo de drones.

Código aberto (Source code, 6a temp.)

Trata dos riscos do uso de impressoras 3D para a reprodução e distribuição não controlada de armas de fogo pela internet. Como se trata de um programa de código aberto, a distribuição pode ocorrer poucas horas depois da baixa do arquivo. Tais armas, embora sejam reproduções em plástico, disparam projéteis reais. Não são detetáveis, rastreáveis ou regulamentadas. Há outro senão: sendo um programa de código aberto, pode sofrer alterações (aperfeiçoamentos) realizadas pelo próprio usuário, o que pode tornar única cada arma reproduzida em 3D. É preciso considerar ainda a possibilidade de falha na impressão e até as condições climáticas, que podem interferir no funcionamento da impressora, causando falhas que podem comprometer a integridade física do usuário.

Conduzido (Driven, 7a temp.)

Alicia Florrick, ladeada por Cary Agos (Matt Czuchry), interroga Anthony Edward Dudewitz (Joey Slotnick), especialista em tecnologia e criador de um software de direção difusa, batizado T-Port. Trata-se de uma tecnologia auxiliar para veículos automotores que permite direção autônoma (sem a participação de pessoas). O que está em questão, para Alicia, é se tal tecnologia teria sido responsável por colocar sua cliente numa cadeira de rodas. O veículo causador do acidente, equipado com o T-Port, inclui um HD com função similar a dos tacógrafos, o qual teve seus dados apagados, em razão do acidente. Alicia investiga se tais dados foram apagados de forma acidental ou intencional. A advogada introduz o assunto:

- Sr. Dudewitz, o que acha sobre o futuro da IA (inteligência artificial)?

Ela reformula a pergunta:

- O que acha da IA?

- O que quer saber? Pergunte. - responde Dudewitz.

- Corremos risco com a IA?

- Acho que ela fica mais inteligente a cada dia. Aprende nossos limites e os limites dela. Evolui. Haverá ajustes após a dominação...

Alicia intervém:

- Desculpe interromper. Como assim, dominação?

- A singularidade. Quando o sistema pode melhorar sozinho repetidamente; quando ele for melhor em recalibrar, expandir e reproduzir-se do que nós, o breve reinado da humanidade chegará ao seu inevitável fim. [...].

Cary Agos prossegue:

- Quem mais acha que a IA é potencialmente perigosa?

- Elon Musk, Stephen Hawking, Bill Gates. - responde o especialista.

- Não é uma posição atípica?

- É certamente atípica. Só gênios pensam assim, como eu. A massa está ocupada demais vendo TV (grifo nosso).

Alicia retoma o interrogatório:

- Última pergunta: como acha que o disco se apagou?

Ela reformula a pergunta:

- Acha que o carro é capaz de apagar a própria memória?

- Sim, eu acho.

- E, se acredita nisso, o programa poderia ignorar as funções de segurança?

- Eu não diria isso. - responde o especialista, demonstrando desconforto.

- Mas se acha que a IA pode transcender a ideia original dos criadores e criou a teoria da direção difusa para tornar o carro mais agressivo, mais humano, ele não poderia ignorar as medidas de segurança? Sr. Dudewitz, você tem uma resposta para isso?

- Sou inteligente.

- Um gênio. - confirma Alicia.

- Sim. E criei algo tão complexo que não posso afirmar o que ele pode, ou não, fazer.

- Então, ele pode ter colocado aquela mulher - diz Alicia, apontando para sua cliente - na cadeira de rodas?

- É possivel. - conclui Dudewitz.

O episódio foi exibido originalmente nos Estados Unidos em 15/11/2015.

Indicados ao Writers Guild of America Awards em vários anos, Robert e Michelle King não criaram, com The good wife, tão somente uma série dramática para a TV, mas tremendas aulas sobre Direito, Ética profissional e Política. É de se tirar o chapéu.

(de Francisco Filardi)


NOTAS

1 a série foi produzida em associação com os irmãos Tony e Ridley Scott.

2 The good wife deu origem ao spin-off The good fight (2017-2022), com a participação de apenas parte de seu elenco original (Christine Baranski, Sarah Steele, Cush Jumbo e Zach Grenier). Já a série policial Elsbeth, também derivada, terá seu primeiro episódio exibido nos Estados Unidos em 29/02/2024, pela rede CBS, com Carrie Preston reprisando a atuação da divertida advogada.

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