Janine era uma dessas mulheres que
apreciavam a leveza do espírito e seguia a vida sem grandes
"encucações". Não era metódica, não tinha vícios, mas
tinha lá as suas predileções, entre estas uma certa padaria de
Copacabana - que frequentava, há mais de vinte anos. Mesmo não
sendo fã de praia (pois o sol, o sal e a areia castigavam sua pele
alva), apreciava as caminhadas vespertinas pelo calçadão, do
Copacabana Palace ao Posto 5. E acabava o passeio com uma "esticada"
na tal padaria.
Num sábado, estava ela encostada no
balcão dos pães, prestes a ser atendida, quando um cidadão "furou
a fila", ordenando à atendente que embrulhasse um pão doce da
vitrina. Indignada, Janine tocou o ombro do sujeito e apontou a fila
detrás de si. Ele, por sua vez, olhou-a, de cima a baixo, e disse,
em tom de deboche:
- Se liga, dona! (sic) O mundo é dos
"espertos"!
Ela, que no geral era tranquila,
estava diante de uma das situações que mais detestava. Poucas
coisas, de fato, a tiravam do sério. Uma delas era a má educação
das pessoas. Não foram poucas as vezes que discutira por tal
motivo. Nem seria a última. O comportamento daquele homem era-lhe
inadmissível e ela não deixaria "barato":
- É verdade. - retrucou Janine. O
mundo é mesmo... "dos espertos", como você diz. O
problema é que vovó dizia que
toda esperteza tem fim, às vezes rápido, às vezes trágico.
Então, boa sorte. E, antes que me esqueça, "dona" é a
senhora sua avó!
Ele, que até então sustentava no
rosto o cínico sorriso dos desavergonhados, franziu o cenho e tornou
a olhar, com desprezo, para Janine:
- Vá se danar! - disse, dando as
costas.
Embora sentisse a alma ferver, ela
engoliu o ódio e não desviou os olhos do homem que então se
dirigia ao caixa. Quando este alcançou a porta da padaria, já à
calçada, ela arrematou, num tom grave, porém cristalino, de modo
que todos ali pudessem ouvir:
- O inferno está próximo e você
está na beirola! Tenha cuidado, espertalhão!
Ele ouviu e, sem interromper os
passos, olhou para trás, enfurecido:
- Ora, vá se fod...
Mas não chegou a completar a frase.
Um veículo de passeio desgovernado avançou pela calçada e colheu o
sujeito, ali mesmo, à porta do estabelecimento. A colisão se deu
com tamanha violência que fez o corpo dar uma volta completa em
torno de si e cair de barriga, estático, sem vida. Como que por
milagre só ele fora atingido, ninguém mais. Foi o que constatou
o grupo de curiosos que
logo se dispôs a conjeturar sobre as causas do ocorrido.
Elisa, a atendente, retrocedeu dois
passos, por detrás do balcão, enquanto olhava para Janine com
pavor. Vira a cliente murmurar para si mesma, como se a orar, ou a
invocar um feitiço, pouco antes de aquele homem alcançar a porta da
padaria. Ou não vira? Já duvidava de si, tamanho o medo que lhe
acelerava o pulso. Estava confusa e não confiava nos próprios
sentidos. Mas estava convicta de que ouvira a cliente pronunciar a
palavra "inferno". Foi o bastante para fazê-la apertar
nas mãos o terço que trazia consigo. Em seus olhos, era possível
ler o que lhe estava claro: fora a cliente quem provocara a tragédia!
Janine, percebendo o terror que se
apoderava da mulher, repreendeu-a, com o indicador em riste e firmeza
na voz:
- Não olhe para mim desse jeito! Eu
não interfiro nas coisas de Deus!
Mas a atendente não se convencera.
Religiosa que era, tratou de acender duas velas, ao chegar em casa:
uma, para a alma que subira; outra, para afastar de si a bruxa
que, tinha certeza, amaldiçoara aquele infeliz.
(de Francisco Filardi - inspirado
no livro "A arte de ser leve", de Leila Ferreira,
Principium/Editora Globo, 13ª reimpressão, 2015)
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