ÍNDIOS, XINGU E NÓS, OS SELVAGENS
(por Francisco Filardi)
“No
Brasil, ninguém gosta de índio, filho...”. A frase, dita
pelo então governador de São Paulo, Jânio da Silva Quadros, a
Orlando Villas Bôas, pouco antes do pleito que o elegeu presidente
da República, em 1960, é citada com certo destaque no filme Xingu
e talvez explique, em parte, a pífia bilheteria do
filme dirigido por Cao Hamburger. Desde a estreia, em 06/04/12, até
03/06/12, foram vendidos 367.928 ingressos, segundo o site Adoro
Cinema.
No
início de maio1, Artur Xexéo, colunista do jornal O
Globo, do Rio de Janeiro, publicou o texto “A nova classe média
não vai ao Xingu”, que trazia a seguinte consideração sobre o
filme: Lotou as salas de circuitos que ainda podem ser chamados
de “de arte” e deixou às moscas os cinemas que ainda podem ser
chamados de “da periferia”. No Rio de Janeiro, por exemplo, isso
significa filas para ser assistido em cinemas da Zona Sul, e salas
vazias nos shoppings de subúrbio.
Assisti
ao filme em três ocasiões, em cinemas das zonas norte e sul do Rio
de Janeiro, e testemunhei o relatado por Xexéo. Ainda assim, o
jornalista relativiza o mau desempenho de Xingu, comparando-o com
produções como “O artista”, vencedor do Oscar de Melhor Filme
este ano, que alcançou na terceira semana de exibição apenas
151.539 espectadores. Sob este ângulo, Xingu é um grande
sucesso!, arremata Xexéo. Mas este, no meu entendimento, é um
argumento débil. Xingu de
fato “suou” para alcançar a bilheteria citada2, o que não faz jus à obra, tampouco ao que ela representa. Um de
seus produtores, o cineasta Fernando Meirelles, acreditava que o
filme superaria a casa de um milhão de espectadores. Tinha potencial
para isso. É um belo filme. Amei Xingu. Aborda, com sensibilidade e
uma certa poesia, a dura marcha dos irmãos Villas Bôas a fim de
contatar e agrupar índios de diversas etnias nos limites do Parque
Nacional, que completou cinquenta anos em 2011. No entanto, o esforço
pela preservação do homem e da cultura indígena está distante de
encontrar solução definitiva. Três fatos recentes parecem dar
sentido à declaração de Jânio Quadros:
primeiro,
a polêmica sobre os impactos ambientais e sociais decorrentes da
construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, na
altura de Altamira/PA. A antropóloga Carmen Junqueira, estudiosa dos
povos indígenas do Alto Xingu, em recente entrevista concedida à
jornalista Camila Nóbrega, do jornal O Globo3, é
contrária à construção da usina, o que classifica como
“desenvolvimento a qualquer custo” - com consequências terríveis
para os povos indígenas, a exemplo dos Kaiapós e dos Jurunas. Para
sustentar sua opinião, a antropóloga comenta que visitou as
instalações da hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, também
no Pará, onde deparou com um tremendo impacto sobre o ambiente e os
habitantes da região. “..., quando estive lá, não consegui nem
enquadrá-la numa foto, dado o tamanho do monstro”, observa.
Carmen conclui que, além de lutarem pela própria sobrevivência e
de zelarem pela natureza, os índios avessos à construção da usina
de Belo Monte estão protegendo também a nós, não índios, dessa
agressão;
em
seguida, temos a determinação da Justiça Federal de Naviraí/MS de
expulsar 170 índios das etnias Guarani-Kaiowá de acampamentos
situados às margens do rio Hovy, na fazenda Camborá, localizada em
Iguatemi, município do cone sul do Mato Grosso do Sul, por
reivindicarem sua permanência em territórios ancestrais. Ocorre que
esse território, de dois hectares de extensão, encontra-se numa
fazenda de cerca de 700 hectares... Segundo Tonico Benites4,
um forte sentimento religioso de pertencimento à terra permeia
a existência e a sobrevivência desses índios no local; No
dia 30/10/12, decisão do Tribunal Regional Federal da 3a. Região
garantiu a permanência dos Guarani-Kaiowá na terra reivindicada,
mas em se tratando de decisão da justiça brasileira, a pergunta que
cabe é: até quando?
por
fim, um outro episódio polêmico envolvendo o risco de demolição do
antigo Museu do Índio, na rua Mata Machado, imediações do estádio
Mário Filho (Maracanã), no Rio de Janeiro. A finalidade, segundo o
governo do estado, seria melhorar um dos acessos ao estádio visando
à Copa do Mundo de 2014. Embora a decisão da juíza federal Edna
Carvalho Kleemann, da 12ª Vara Federal do Rio de Janeiro, tenha
proibido a demolição e o despejo dos vinte índios que vivem nas
ruínas do Museu, o Jornal do Brasil online noticiou, no dia 29 de
outubro, que o governador Sérgio Cabral (mesmo com a proibição
citada) adquiriu da Companhia Nacional de Abastecimento o terreno
onde está situado o antigo Museu, por 60 milhões de reais. Ou
seja, futuro incerto para os índios da chamada “tribo Maracanã”.
Segundo
o Censo Demográfico 2010, publicado em abril de 2011 pelo IBGE5,
há 896.917 índios no Brasil (desse total 78.954 não se declaram,
mas se consideram indígenas). Não é uma população a ser
desprezada. Dado o seu crescimento significativo, vem enfrentando
problemas em quase todos os estados brasileiros. O texto “A saga
dos Guarani-Kaiowas”, assinado pelos jornalistas Camila Nóbrega,
Cleide Carvalho e Guilherme Voitch6, informa que 56
conflitos fundiários envolvendo índios foram registrados em 2011,
em 16 estados, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
Centenas
de índios são mortos defendendo suas terras de inimigos históricos,
a exemplo de fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, como visto em
Xingu. É a ganância que sufoca o homem. É o sentimento obsessivo
de ter “a qualquer preço” que o faz perder o senso e a razão.
Não é preciso que vendamos todas as almas dos nossos índios num
leilão7, para enriquecermos às custas do
país. Porque o país enriquece, não as pessoas. Pessoas são sempre
sacrificadas por um “bem”(?) maior. Essa balança está
desnivelada. Precisamos de recorrer à lição que aprendemos ainda
nos primeiros anos do ensino fundamental: os índios foram os
primeiros habitantes desta terra, por eles batizada Pindorama. E não
há como mudar a História. Não ESSA História.
Precisamos
de resgatar a nossa condição humana e frear em definitivo a matança
de índios. Não é pelo fato de nós, habitantes dos grandes
centros, desconhecermos ou não entendermos seus costumes, suas
crenças e rituais, sua cultura ou a história de seus antepassados,
que devemos rechaçá-los, combatê-los, eliminá-los. Precisamos de
respeitar tudo aquilo que não conhecemos (ou tememos). E, acima de
tudo, precisamos de respeitar o “homem índio” como o ser humano
que é, como parte da Natureza.
Por
fim, reproduzo a carta encaminhada pelo cacique Seattle, da tribo
Duwamish, do Estado de Washington, ao então presidente dos Estados
Unidos, Franklin Pierce, em 1854, como resposta à intenção do
governo em adquirir território de sua tribo. Trata-se de uma
reflexão acerca do nosso posicionamento em relação ao mundo e
acerca do (nosso) presente e futuro; um tratado sobre o homem em equilíbrio com
a Natureza.
A
carta do cacique Seattle
"O
grande chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a nossa
terra. O grande chefe assegurou-nos também de sua amizade e sua
benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não
necessita da nossa amizade. Porém, vamos pensar em tua oferta, pois
sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e
tomará nossa terra. O grande chefe em Washington pode confiar no que
o chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que nossos irmãos
brancos podem confiar na alternação das estações do ano. Minha
palavra é como as estrelas - elas não empalidecem".
Como
podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal ideia é-nos
estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da
água. Como podes então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre
o nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha
reluzente, todas as praias arenosas, cada véu de neblina nas
florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são
sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. Sabemos que o
homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um
torrão de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho que vem
de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua
irmã, mas sim sua inimiga, e depois de exauri-la, ele vai embora.
Deixa para trás o túmulo dos seus pais, sem remorsos de
consciência. Rouba a terra dos seus filhos. Nada respeita. Esquece a
sepultura dos antepassados e o direito dos filhos. Sua ganância
empobrecerá a terra e vai deixar atrás de si os desertos.
A
vista de suas cidades é um tormento para os olhos do homem vermelho.
Mas talvez isso seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que
nada compreende. Não se pode encontrar paz nas cidades do homem
branco. Nem um lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem da
primavera ou o tinir das asas de insetos. Talvez por ser um selvagem
que nada entende, o barulho das cidades é para mim uma afronta
contra os ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem
não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no
brejo, à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o
espelho da água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva
do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem
vermelho. Porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar - animais,
árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar
que respira. Como um moribundo ele é insensível ao seu cheiro. Se
eu me decidir a aceitar, imporei uma condição. O homem branco deve
tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não
compreendo que possa ser certo de outra forma. Vi milhares de bisões
apodrecendo nas pradarias, abandonados pelo homem branco que os
abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo
como o fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso do que um
bisão que nós, os índios, matamos apenas para sustentar nossa
própria vida.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, os homens morreriam de solidão espiritual porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo está relacionado entre si. Tudo que fere a terra fere também os filhos da terra. Os nossos filhos viram seus pais serem humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, e envenenam seu corpo com alimentos doces e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, até mesmo uns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que tem vagueado em pequenos bandos nos bosques, sobrará para chorar sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso. De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha um dia a descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus! - Julgas, talvez, que o podes possuir da mesma maneira como desejas possuir a nossa terra. Mas não podes. Ele é Deus da humanidade inteira. E quer bem igualmente ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. E causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo seu Criador.
O
homem branco também vai desaparecer talvez mais depressa do que as
outras raças. Continua poluindo tua própria cama, e hás de morrer
uma noite, sufocado nos teus próprios dejetos! Depois de abatido o
último bisonte e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas
misteriosas federem à gente, e quando as colinas escarpadas se
encherem de mulheres a tagarelar - onde ficarão então os sertões?
Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará o adeus à
andorinha da torre e à caça, o fim da vida e o começo da luta para
sobreviver.
Talvez
compreenderíamos se conhecêssemos com que sonha o homem branco, se
soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas
longas noites de inverno, quais as visões do futuro que oferece às
suas mentes para que possam formar os desejos para o dia de amanhã.
Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para
nós. E por serem ocultos, temos de escolher o nosso próprio
caminho. Se consentirmos, é para garantir as reservas que nos
prometeste. Lá talvez possamos viver os últimos dias conforme
desejamos. Depois do último homem ter partido e a sua lembrança não
passar de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo
continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos
como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te
vendermos nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como
nós a protegíamos. Nunca esqueças como era a terra quando dela
tomaste posse. E com toda tua força, o teu poder, e todo o teu
coração - conserva-a para teus filhos e ama a todos. Uma coisa
sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele.
Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum8."
Referências
1Segundo Caderno, jornal O
Globo, edição de 02/05/2012
2A bilheteria de Xingu pode
ter sofrido, em parte, o impacto do blockbuster “Os vingadores”
(dir: Joss Whedon), que estreou em 27/04/2012
3Caderno Amanhã, jornal O
Globo, edição de 16/10/2012
4Guarani-Kaiowá, mestre e
doutorando em Antropologia Social pela UFRJ, em texto publicado no
Caderno Prosa, jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 27/10/2012
5http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_gerais_indigenas/default_uf_pdf.shtm
6Caderno Amanhã, jornal O
Globo, Rio de Janeiro, edição de 06/11/2012
7Trecho da música “Que
país é este?”, da Legião Urbana – álbum “Que país é
este?” (EMI, 1987)
8http://www.natureba.com.br/carta-cacique-seatle.htm
Nenhum comentário:
Postar um comentário