Dentre os filmes dirigidos por Stanley Kubrick, merecem destaque os
títulos 2001: uma odisséia no espaço (1968), do instigante
computador HAL-9000, e Dr. Fantástico (1964), este com
direito a tripla atuação do ator Peter Sellers e a famosa cena da
cavalgadura no míssil, a qual foi satirizada, inclusive, pela
animação Os Simpsons (episódio Homer the vigilante, de
1994).
O mesmo não se pode dizer de O iluminado (The shining, 1980),
inspirado no best seller cult de Stephen King. O filme dirigido por
Kubrick é uma colcha de retalhos que descaracteriza o trabalho do
escritor, omite passagens cruciais do texto original (as árvores em
forma de animais e as idas de Jack ao porão do hotel, onde descobre nos
livros de registros pistas sobre o passado do Overlook, por exemplo)
e retira do hotel a condição de personagem central da trama. Os
espectadores de Kubrick (que não leram o texto de King) ficam
perdidos com as lacunas no roteiro as quais incluem esclarecimentos
acerca do significado da palavra REDRUM e da influência maligna do
hotel sobre seus hóspedes.
Kubrick altera substancialmente o texto original, levando o filme a
um desfecho patético que o afasta totalmente do clima tenso e
violento do último terço do livro de King. Para completar o
desastre, concorrem as atuações catastróficas de Shelley Duvall
(como Wendy Torrance) e do inexpressivo ator mirim Danny
Lloyd (na pele de Danny, o iluminado do título) cujo carisma ou
graça é ZERO.
Já o Dick Halloran retratado por Kubrick (interpretado pelo
simpático Scatman Scrothers) é uma personagem que tem sua
importância reduzida e, portanto, distanciada da função para a
qual foi criada. Em relação a este, há uma passagem do livro
(ignorada por Kubrick) em que o cozinheiro do Overlook, pouco antes
de deixar o hotel, face a aproximação do inverno, pede ao menino uma demonstração de seu poder
mental. Halloran fica perturbado.
Além disso, a importância do Hotel Overlook (como dissemos,
personagem central da trama) foi relegada a um segundo plano por
Kubrick. Na versão do cineasta, tem-se a impressão de que o hotel
nada tem a ver com as alterações no comportamento de Jack. Parece
que este enlouqueceu face ao isolamento da civilização (a trama se
passa no inverno, Jack e a família estão sós no Overlook até o
fim da estação). Até Tony, o amigo imaginário que apavora Danny
em várias passagens do livro, raramente é citado no filme. O
título de Kubrick também não esclarece o porquê de Danny avistar,
em imagens superpostas, duas irmãs gêmeas em vestido azul, ora de
pé, ao fundo do corredor, ora cobertas de sangue, aparentemente no
mesmo local. As meninas são filhas do homem com quem Jack conversa
no banheiro do salão de baile. Esse homem é o Sr. Grady, antigo
zelador do Overlook, que matou as filhas a machadadas (sob influência
do hotel). Como percebemos, a omissão de detalhes faz os
espectadores de Kubrick tatearem na penumbra, comprometendo o
resultado.
Mas, para quem leu o texto de King, a cereja do bolo são as cenas em
que é impossível evitar gargalhadas, a exemplo das que citamos
abaixo.
Cena 1:
Danny, sob influência de seu amigo imaginário Tony, entra no quarto
da mãe, que está a dormir. Em aparente transe, e de posse de um
facão, o menino repete seguidamente o palíndromo REDRUM (MURDER,
assassino) num tom de voz ridículo, irritante e risível, em
cena que não existe no livro.
Cena 2:
Wendy, às lágrimas (ou caretas...), sacode freneticamente um taco
de beisebol, enquanto golpeia o ar de forma patética, para fugir de
Jack (ele não deseja machucá-la, só estrangulá-la!). É, Wendy, pare com esse bastão!!!
Cena 3:
Wendy Torrance foge do marido perturbado, acompanhada pelo filho, e
sobe as escadas em direção aos seus aposentos. Lá chegando, ambos
se trancam no minúsculo banheiro. Ela faz o filho passar por uma
janela estreita que dá para uma espécie de rampa de gelo que faz o
menino alcançar a rua. No entanto, ela quase fica entalada, não
consegue escapar. Jack, por sua vez, atinge a porta com um machado,
enquanto ela, trêmula e desesperada, encolhe-se num canto próximo
da porta, com o facão nas mãos. A câmera pega Wendy de frente, ao
tempo em que capta as machadadas de Jack. A cada machadada, um grito
histérico de Wendy, o que nos faz lembrar do curta Thriller, de
Michael Jackson. Não há como não rir!
Cena 4:
Ao desistir da perseguição ao filho iluminado, Jack desaba no gelo,
com o machado em uma das mãos e os olhos revirados para cima. No close,
não há como não lembrar do maluquete Jim Carrey!
Stephen King veio a público condenar o trabalho de Kubrick (King
odeia o filme). Mas a coisa não ficou nisso. O filme desagradou
também aos membros da Academia de Artes Cinematográficas de
Hollywood: no ano seguinte (1981, portanto), o diretor e sua atriz
coadjuvante foram indicados à primeira edição do Troféu Framboesa
de Ouro, premiação destinada à escolha dos piores do ano (uma
sátira ao Oscar da Academia).
No entanto, mesmo com a ofensa à obra de King, devemos fazer justiça
ao trabalho de Jack Nicholson, nosso maluquete preferido, imbatível
nos papéis de lunático, de psicopata ou de vítima de TOC
(transtorno obsessivo compulsivo).
No geral, a adaptação da obra de King, citando uma declaração do
autor para defini-la, o livro é quente, o filme é frio; o livro
termina com fogo, e o filme, com gelo1, coisa que só
quem leu King e assistiu a Kubrick irá compreender.
1 em entrevista concedida a Andy Greene, em 12/01/2015,
publicada na revista Rolling Stone.
(por Francisco Filardi)