domingo, 29 de julho de 2018

"MEU JANTAR COM ANDRÉ" (1981), UM PASSEIO PELA FILOSOFIA EXISTENCIALISTA


Numa época em que não havia globalização, internet, telefones celulares, redes sociais e inteligências artificiais, o diretor francês Louis Malle conduziu o interessante Meu jantar com André, história real em que o diretor de teatro Andre Gregory e o ator Wallace Shawn (conhecido dos brasileiros por suas participações nos seriados The good wife, ER - Plantão médico e The gossip girl, entre outros), reencontram-se em um restaurante, após longa ausência de Gregory, para colocar a conversa em dia.

Ambos se debruçam sobre uma discussão filosófica existencialista de alto nível a fim de desfiar suas experiências com o teatro experimental, a forma como os seres humanos conduzem sua vidas e a suspeita de que todos representamos papéis em uma vida que não nos pertence, que os roteiros de nossas vidas são escritos a partir de uma falsa percepção de nós mesmos.

O fragmento do discurso de Andre Gregory, a seguir, evidencia a indiferença, a solidão, a dificuldade de relacionamento, a dissimulação e a ausência de sentimentos e pensamentos que caracterizam, de forma inquietante, o tempo presente - embora tais temas sejam considerados normais, em qualquer parte do mundo. Confiram:


[...] apenas alguns dias atrás, eu conheci esse homem a que muito admiro. Ele é um físico sueco. Gustav Björnstrand. Ele me disse que não assiste a televisão; ele não lê jornais, não lê revistas. Ele os tirou de sua vida por completo, porque sente que estamos vivendo algum tipo de pesadelo orwelliano e que tudo o que ouvimos hoje contribui para transformar-nos em robôs.

Quando eu estava em Findhorn, conheci esse extraordinário especialista que dedicou sua vida a salvar árvores. Acabou de voltar para Washington, para fazer lobby em prol das sequoias. Ele tem 84 anos de idade e sempre viaja com uma mochila, porque nunca sabe onde estará amanhã. Quando o conheci em Findhorn, ele me disse: "De onde você é?". Eu disse: "Nova Iorque". Ele disse: "Ah, Nova Iorque! Sim, um lugar muito interessante. Você conhece um monte de nova-iorquinos que falam que querem ir embora mas nunca vão?". E eu disse: "Oh, sim". E ele disse: "Por que você acha que eles não vão?". Eu lhe dei diferentes teorias banais. Ele disse: "Oh, eu não acho que seja isso. Acho que Nova Iorque é modelo para um novo campo de concentração, onde o campo foi construído pelos próprios presos e os presos são os guardas, e eles têm orgulho dessa coisa que construíram. Eles construíram sua própria prisão. E assim eles existem num estado de esquizofrenia onde eles são tanto guardas quanto prisioneiros. E, como resultado, eles já não têm - tendo sido lobotomizados - a capacidade de deixar a prisão que eles fizeram ou mesmo de vê-la como uma prisão". E então ele pôs a mão no bolso e tirou uma semente de árvore e disse: "Isto é um pinheiro". Colocou-a na minha mão e disse: "Escape, antes que seja tarde demais".

Na verdade, pelos últimos dois ou três anos, Chiquita e eu temos essa sensação desagradável de que realmente devemos ir embora. Nós realmente nos sentimos como os judeus da Alemanha no final dos anos 30. Saia daqui. Claro que o problema é onde ir. Porque parece bastante óbvio que o mundo inteiro está indo na mesma direção. Acho perfeitamente possível que os anos 60 representaram a última irrupção do ser humano antes de ele ser extinto e que este é o começo do resto de futuro, e que a partir de então haverá todos esses robôs andando por aí, sem sentir nada, sem pensar nada. E não sobrará ninguém para lembrá-los de que uma vez houve uma espécie chamada "ser humano", com sentimentos e pensamentos, e que a história e a memória estão sendo apagadas. Logo, ninguém realmente vai se lembrar de que a vida existiu no planeta.

Agora, obviamente, Björnstrand sente que não há quase esperança alguma e que estamos provavelmente retornando a um período selvagem, sem lei e aterrorizante. As pessoas da Findhorn veem isso de modo um pouco diferente. Eles sentem que haverá esses bolsões de luz surgindo em diferentes partes do mundo e que estes serão, de certa forma, planetas invisíveis, neste planeta, e que enquanto nós, ou o mundo, nos tornamos ainda mais frios, poderemos fazer viagens espaciais invisíveis a esses planetas, reabastecer para o que precisamos de fazer no planeta em si e voltar. E a percepção deles de que deve haver centros agora, onde as pessoas podem reconstruir um novo futuro para o mundo. E, quando eu estava falando com Gustav Björnstrand, ele disse que, na verdade, esses centros estão crescendo em todos os lugares agora e que o que eles estão tentando fazer - que é o que Findhorn estava tentando fazer e, de certa forma, o que eu estava tentando fazer... quero dizer, estas coisas não podem ser nomeadas, mas, de uma maneira, são todas tentativas de se criar um novo tipo de escola ou um novo tipo de mosteiro. E Björnstrand fala ainda sobre o conceito de "reservas", ilhas de segurança onde a história pode ser lembrada e o ser humano pode operar a fim de manter a espécie humana enquanto atravessamos uma idade sombria. Em outras palavras, estamos falando sobre um submundo, o que existia, de uma forma diferente, na Idade Média, entre as ordens místicas da Igreja. O objetivo desse submundo é descobrir como preservar a luz, a vida, a cultura, em como manter as coisas vivas.

Sabe, eu fico pensando que o que nós precisamos é de uma nova linguagem, a linguagem do coração, uma língua como na floresta polonesa, onde a linguagem não foi necessária. Algum tipo de linguagem entre as pessoas que é um novo tipo de poesia. Essa é a poesia da abelha dançante que nos diz onde o mel está. E eu acho que, a fim de criar essa linguagem, vamos ter que aprender a como passar por um espelho e achar a outro tipo de percepção na qual temos aquela sensação de estarmos unidos a todas as coisas e que, de repente, compreendemos tudo.

Meu jantar com André (My dinner with Andre, 1981)
Direção: Louis Malle
Atores: Andre Gregory e Wallace Shawn
lançado em DVD no Brasil pela coleção Obras Primas (111 min).

Intervalo recomenda!

Nenhum comentário:

Postar um comentário