Numa época em que não havia globalização, internet, telefones
celulares, redes sociais e inteligências artificiais, o diretor
francês Louis Malle conduziu o interessante Meu jantar com André,
história real em que o diretor de teatro Andre Gregory e o ator
Wallace Shawn (conhecido dos brasileiros por suas participações nos
seriados The good wife, ER - Plantão médico e The gossip girl,
entre outros), reencontram-se em um restaurante, após longa ausência
de Gregory, para colocar a conversa em dia.
Ambos se debruçam sobre
uma discussão filosófica existencialista de alto nível a fim de desfiar suas
experiências com o teatro experimental, a forma como os seres
humanos conduzem sua vidas e a suspeita de que todos representamos papéis em
uma vida que não nos pertence, que os roteiros de nossas vidas são
escritos a partir de uma falsa percepção de nós mesmos.
O fragmento do discurso de Andre Gregory, a seguir, evidencia a
indiferença, a solidão, a dificuldade de relacionamento, a
dissimulação e a ausência de sentimentos e pensamentos que
caracterizam, de forma inquietante, o tempo presente - embora tais temas sejam considerados normais, em qualquer parte do mundo. Confiram:
[...] apenas alguns dias atrás,
eu conheci esse homem a que muito admiro. Ele é um físico sueco.
Gustav Björnstrand. Ele me disse que não assiste a televisão; ele
não lê jornais, não lê revistas. Ele os tirou de sua vida por
completo, porque sente que estamos vivendo algum tipo de pesadelo
orwelliano e que tudo o que ouvimos hoje contribui para
transformar-nos em robôs.
Quando eu estava em Findhorn,
conheci esse extraordinário especialista que dedicou sua vida a
salvar árvores. Acabou de voltar para Washington, para fazer lobby
em prol das sequoias. Ele tem 84 anos de idade e sempre viaja com
uma mochila, porque nunca sabe onde estará amanhã. Quando o
conheci em Findhorn, ele me disse: "De
onde você é?".
Eu disse: "Nova
Iorque". Ele
disse: "Ah, Nova
Iorque! Sim, um lugar muito interessante. Você conhece um monte de
nova-iorquinos que falam que querem ir embora mas nunca vão?".
E eu disse: "Oh,
sim". E ele
disse: "Por que
você acha que eles não vão?".
Eu lhe dei diferentes teorias banais. Ele disse: "Oh,
eu não acho que seja isso. Acho que Nova Iorque é modelo para um
novo campo de concentração, onde o campo foi construído pelos
próprios presos e os presos são os guardas, e eles têm orgulho
dessa coisa que construíram. Eles construíram sua própria prisão.
E assim eles existem num estado de esquizofrenia onde eles são
tanto guardas quanto prisioneiros. E, como resultado, eles já não
têm - tendo sido lobotomizados - a capacidade de deixar a prisão
que eles fizeram ou mesmo de vê-la como uma prisão".
E então ele pôs a mão no bolso e tirou uma semente de árvore e
disse: "Isto é um
pinheiro".
Colocou-a na minha mão e disse: "Escape,
antes que seja tarde demais".
Na verdade, pelos últimos dois
ou três anos, Chiquita e eu temos essa sensação desagradável de
que realmente devemos ir embora. Nós realmente nos sentimos como os
judeus da Alemanha no final dos anos 30. Saia daqui. Claro que o
problema é onde ir. Porque parece bastante óbvio que o mundo
inteiro está indo na mesma direção. Acho perfeitamente possível
que os anos 60 representaram a última irrupção do ser humano antes
de ele ser extinto e que este é o começo do resto de futuro, e que
a partir de então haverá todos esses robôs andando por aí, sem
sentir nada, sem pensar nada. E não sobrará ninguém para
lembrá-los de que uma vez houve uma espécie chamada "ser
humano", com sentimentos e pensamentos, e que a história e a
memória estão sendo apagadas. Logo, ninguém realmente vai se
lembrar de que a vida existiu no planeta.
Agora, obviamente, Björnstrand
sente que não há quase esperança alguma e que estamos
provavelmente retornando a um período selvagem, sem lei e
aterrorizante. As pessoas da Findhorn veem isso de modo um pouco
diferente. Eles sentem que haverá esses bolsões de luz surgindo
em diferentes partes do mundo e que estes serão, de certa forma,
planetas invisíveis, neste planeta, e que enquanto nós, ou o mundo,
nos tornamos ainda mais frios, poderemos fazer viagens espaciais
invisíveis a esses planetas, reabastecer para o que precisamos de
fazer no planeta em si e voltar. E a percepção deles de que deve
haver centros agora, onde as pessoas podem reconstruir um novo futuro
para o mundo. E, quando eu estava falando com Gustav Björnstrand,
ele disse que, na verdade, esses centros estão crescendo em todos os
lugares agora e que o que eles estão tentando fazer - que é o que
Findhorn estava tentando fazer e, de certa forma, o que eu estava
tentando fazer... quero dizer, estas coisas não podem ser nomeadas,
mas, de uma maneira, são todas tentativas de se criar um novo tipo
de escola ou um novo tipo de mosteiro. E Björnstrand fala ainda
sobre o conceito de "reservas", ilhas de segurança onde a
história pode ser lembrada e o ser humano pode operar a fim de
manter a espécie humana enquanto atravessamos uma idade sombria. Em
outras palavras, estamos falando sobre um submundo, o que existia, de
uma forma diferente, na Idade Média, entre as ordens místicas da
Igreja. O objetivo desse submundo é descobrir como preservar a luz,
a vida, a cultura, em como manter as coisas vivas.
Sabe, eu fico pensando que o que
nós precisamos é de uma nova linguagem, a linguagem do coração,
uma língua como na floresta polonesa, onde a linguagem não foi
necessária. Algum tipo de linguagem entre as pessoas que é um novo
tipo de poesia. Essa é a poesia da abelha dançante que nos diz
onde o mel está. E eu acho que, a fim de criar essa linguagem,
vamos ter que aprender a como passar por um espelho e achar a outro
tipo de percepção na qual temos aquela sensação de estarmos
unidos a todas as coisas e que, de repente, compreendemos tudo.
Meu jantar com André (My dinner with Andre, 1981)
Direção: Louis Malle
Atores: Andre Gregory e Wallace Shawn
lançado em DVD no Brasil pela coleção Obras Primas (111 min).
Intervalo recomenda!
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