HIPNOSE COLETIVA
(de Francisco Filardi)
Em "A fantástica fábrica de
chocolate" (1964), o escritor galês Roald Dahl apresenta aos
leitores a personagem Mike Teavee, um menino de nove anos de idade
fascinado por televisão. Quando diante do aparelho, Teavee aparenta
desconectar-se de tudo o que lhe está à volta, inclusive dos pais,
espectadores passivos de seu “transe”. Na versão cinematográfica
de 1971, dirigida por Mel Stuart, o menino assiste a filmes de
faroeste em roupas de vaqueiro, numa alusão à força hipnótica do
veículo. Já na versão assinada por Tim Burton, em 2005, o objeto
de fascínio são os jogos violentos de videogames.
Esse estado de alienação de que Mike
Teavee é vítima sempre esteve e estará presente em nosso
cotidiano. Notadamente, a partir do século XX avanços em campos de
conhecimento diversos vêm fazendo o possível para furtar do ser
humano o que lhe resta de humanidade. Quem não se lembra das
imagens icônicas de Charles Chaplin torcendo parafusos e deslizando
por entre engrenagens, em “Tempos modernos” (1936)? Essa notável
crítica ao taylorismo¹
retrata o trabalhador fabril como um ser repetitivo, mecanizado,
desalmado: o homem, criador da máquina, visto como engrenagem,
absorvido pela máquina, fundindo-se a ela. O incrível é que nada
mudou nesses quase oitenta anos. A crítica de Chaplin permanece
atual e vibrante. O moderno, a novidade, o consumo, a tecnologia, a
robótica, tudo não passa de um “canto de sereias” orquestrado
para arrastar um número cada vez maior de marujos para o fundo do
mar. Ou, se preferirem, um número cada vez maior de trabalhadores
desalmados para o interior da máquina.
Os chamados smartphones,
por exemplo, telefones portáteis que agregam funções (sendo a de
telefonar uma das menos interessantes), mantêm seus usuários em
interação silenciosa, alheios ao ambiente,
efeito este
semelhante ao provocado pela TV sobre Mike Teavee. Basta um passeio
pelas ruas, metrô, ônibus, em salas de espera de clínicas médicas
e odontológicas, e até em cinemas e casas de espetáculos, para
constatarmos a frequência e mesmo a inconveniência desses
eletrônicos. O diferente, o incomum
hoje é não usarmos os polegares. Mas a quem ou a quê estamos, de
fato, conectados?
Quando às ruas, as pessoas abdicam
temporariamente do mundo, enquanto se recolhem ao microcosmo
individualizado de seus smartphones.
É
provável
que esse
teclar frenético e
solitário as “proteja”, de
algum modo, das
ameaças de nosso mundo belicoso, mas tal
isolamento, ilusório,
impede-as de perceber o impacto que o mundo tem sobre elas, sobre
todos nós. Somos corrompidos por imagens porque nosso
olhar é incentivado desde a infância – por nossos pais, pela
mídia, pela sociedade - a apreciar
“estampas”. Aceitamos e absorvemos tão somente o simpático,
o carismático, o bom, o belo,
o perfeito, sem que
alcancemos
a ideia que rege esse
conceito (corrupção).
Perdemos a capacidade objetiva de analisar
e de raciocinar,
bem como a de coletar e de
triar informações. Valorizamos o duvidoso, porque priorizamos a
figurinha, não o selo. E é
justo essa forma de maravilhamento que nos
mantém em uma “bolha”,
assim como o
menino Mike Teavee. Por isso, não percebemos o perigo.
Nossa enganosa percepção da
realidade nos torna “zumbis”, reféns de mentes vivaldinas que
estudam e mantêm vigilância sobre nossos passos. Implantes de
chips no corpo, identificação biométrica etc, são ideias
trabalhadas paciente e sub-repticiamente há décadas, para colocar
em xeque nossa liberdade e privacidade. A literatura e os filmes de
ficção científica do hemisfério norte do planeta têm, de certo
modo, preparado o terreno para uma pavorosa realidade que está por
vir. Se há dúvida quanto a isso, basta lembrar que o “Big
Brother” (da obra “1984”, escrita por George Orwell em 1948)
era considerado ficção, à época de seu lançamento². Nós, os
tais zumbis, seguimos a onda, não resistimos a ela, pois
maravilhados pelo tal “canto de sereias” não percebemos que
nossas embarcações estão próximas dos rochedos. Muitas até já
colidiram. A pergunta é: quando acordaremos? Acordaremos?
Quem assistiu a pelo menos uma das
versões cinematográficas de “A fantástica fábrica de
chocolate”, ou mesmo leu a obra de Dahl, deve ter reagido tanto à
hipnose do menino Mike Teavee quanto à inépcia de seus pais. Mas,
se olharmos de forma distanciada a maneira como agimos e pensamos,
entenderemos que o autor, assim como Orwell e Huxley, era um
visionário que nos alertou para perigos reais e iminentes.
Não nos enganemos com esse cupom
dourado: Teavee está bem mais próximo de nós do que imaginamos.
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¹ modelo de administração
científica, desenvolvido no início do século XX, por Frederick
Winslow Taylor (1856-1915).
² O livro “1984” foi publicado
originalmente em 1949.
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